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presença e afeto, cássio figueiredo

  • Foto do escritor: GGabriel Albuquerque
    GGabriel Albuquerque
  • 20 de jan. de 2016
  • 7 min de leitura

"NÓS, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos", diz nietzsche logo na primeira parte do prefácio de genealogia da moral. o motivo, ele diz, é que nunca nos procuramos. "como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?". estamos sempre conhecendo o mundo, a natureza, as moléculas, os átomos, as partículas, as subpartículas, as ciências humanas, a antropologia, a política, a arte, a cultura e outras questões urgentes de altíssima complexidade. por outro lado, somos incapazes de dar sentido ao nosso sofrimento. em nossas vivências e experiências cotidianas, ele receia, estamos sempre "ausentes" de nós mesmos: "nelas não temos nosso coração — para elas não temos ouvidos".

como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser — ah! e contamos errado...

cássio figueiredo, seu quarto disco, é sobre presença presença o que é, como se constrói o corpo presente?

no texto de apresentação do álbum: "Meu esforço e insistência em tentar descrever essa presença que sinto, o clima que me envolve, os símbolos que com tanta força tento interpretar da melhor forma possível. Está tudo aqui, disperso e junto, caótico e distinto"

cássio: na época que eu tava elaborando as gravações, tava lendo uns textos do gumbretch que ele fala de produção de presença na literatura e tudo mais. daí eu pilhei na ideia e pus o nome e meio que rolou de se encaixar um pouco, mas ainda não sabia porquê. e a imagem [da capa], eu tava tirando fotos. essa surgiu de um jeito muito descompromissado, por razões puramente esteticas. ela acabou encaixando. até fiz um tatuagem. acabou que no final essa coisa da presença se desvirtuou muito do significado original e eu não sabia se mantinha ou não o nome. mas rolou essa parada da polissemia, das diferentes formas que eu poderia compreender esse nome ''presença". mas o que é essa produção de presença de que o gumbrecht fala?

cássio: ele meio que busca uma compreensão da literatura escapando um pouco de compreender através da linguagem simbólica e tudo mais e procura ver como isso se transfigura na forma de afeto, pelo clima que é retratado, mais pelas sensações descritas e como isso tudo meio que transporta a pessoa pra uma outra realidade. falo de uma forma rasa porque nem cheguei a terminar de ler o texto e porque ele dá umas referências que são coisas que não me aprofundei, mas na época isso me fascinou bastante.

uma coisa presente deve ser tangível por mãos humanas — o que implica inversamente que pode ter impacto imediato com corpos humanos gumbrecht

"a relação espacial com omundo e os seus objetos,", diz gumbrecht em outra definição. presença se entrelaça com afeto e com o espaço. entre coisas. o meio, caminho, movimento, mais que o final: trajeto. condução. rua. entre coisas. dois. forma do dia. ligações construídas a partir de relações afetivas.

se presença é existir em um espaço, sua produção parece vir do afeto em espaço, objetos banais, rotina, pessoas que o cercam. a ventania na janela do 11ª andar ("na primeira faixa, a forma do dia, tem um momento que a janela abre e dá pra perceber muito claramente mudança de volume"), o caminhão do lixo, porta de armário, objetos cainda da mesa, gravações em cassete, violão e violino ali da sala. tudo captado com microfone de notebook e celular. "tudo com um equipamento bem precário. na época eu não tinha nem interface de áudio. meu aparato de cassete era só o gravador de mão."

cássio: sujeito [o primeiro álbum] foi mais um trabalho de músicas soltas que eu tava lançando com meu nome. eu tinha um projeto antes disso que eu tentava trabalhar com ruído também. o nome do era inutiargu e era uma coisa ainda mais amadora do que eu faço hoje. os resultados nem sempre me agravadam, não era uma parada que eu tinha certo orgulho de mostrar. daí comecei a assinar meu nome pra ter mais liberdade de mudança e também por essa relação com a minha vida e das minhas memórias e de vivência, eu acho. a parada dos afetos também é uma coisa... tanto de ambientes quanto de pessoas... isso circunda bastante todo o trabalho. (...) eu desisti um pouco dessa tentativa de separar a obra de quem executa a obra, de quem dá forma à obra. porque em tudo que eu fiz tem uma carga muito pessoal e que é indissociável do meu modo de viver e do modo que eu encaro as coisas. e acho que esse é o ponto de partida de qualquer outro tipo de relação que se possa fazer.

... e como foi o contato com o cadu tenório [produtor do disco, além de tocar na faixa caminhão do lixo e a forma do dia]? numa entrevista que eu fiz, ele comentou comigo que a memória é tema central da música dele. isso envolve toda a coisa do afeto e acho que tem muito a ver com as tuas coisas, principalmente o diário e o presença, que têm uma sonoridade mais orgânica do ruído e trabalha com cotidiano e afeto -- dia 1, dia 2, dia 3...

cássio: quando eu tive contato com os trabalhos do cadu acho que rolou uma identificação muito forte, principalmente nesse ponto. e de como ele se manifesta através do som. e acho que realmente foi uma coisa que casou muito. tanto que o resultado foi muito surpreendente, tanto quanto a recepção dele tá sendo. ele [cadu] ouviu um trabalho meu com uma menina lá de belém, a sandy [wanderley]. a gente se conheceu na internet e fez um ep de um projeto que se chama projétil. é mais ambient e spoken word, ela falava umas paradas e eu jogava uns sons em cima. e daí ele gostou bastante, se interessou e manifestou interesse de produzir alguma parada que eu lançasse. o plano inicial era dele produzir o próximo trabalho do projétil, mas entre indas e vindas e desencontros acabamos não compondo mais nada. eu tava com disco pronto, mandei pra ele, ele acabou gostando e rolou.

e os discos [dias e presença] são ruidosos, mas tirando uma faixa ou outra, no geral eles não são agressivos.

cássio: isso foi um ponto que eu prezei bastante. não só no disco mas todo o trabalho. apesar de trabalhar com ruído e ter todo esse flerte com o noise, eu acho que não é uma parada que se encaixa numa estética mais crua, agressiva e violenta como é no harsh noise e no powerviolence. é mais um outro tipo de relação que eu mantenho com isso. e tanto é que esse disco foi até planejado pra ser ouvido num volume não tão alto. e todas as vezes que eu fui fazer a audição eu procurava não deixar num volume tão alto -- ainda que a captação não permitisse ter um volume alto. mas acho que tudo foi muito bem resolvido na masterização que o cadu fez.

por que a ideia é justamente essa coisa mais afetiva, envolvendo essas relações mais pessoas, é isso? por isso você pensou num som que não seja tão agressivo?

cássio: eu não tinha conjecturado muito em relação à isso mas o que você disse se encaixou bastante. principalmente quando você diz "não tão agressivo", porque rola um pouco de agressividade sim. a recepção do disco com alguns amigos meus que não estão acostumados com esse tipo de som foi bem de... se sentir um pouco sufocado e, sei lá, não estabelecer uma relação de matéria e de como aquele som foi gravado, mas de ter esse efeito realmente da presença de como aquilo afetou ela. teve uma amiga minha que ouviu o disco e disse que não conseguiu terminar porque ela tem essa sensibilidade. ela relatou pra mim que se sentiu numa espécie de limbo, uma coisa entre inferno e paraíso, meio de tortura e tal. não sei se eu tive essa impressão, acho que não. mas também tem essa coisa de estar acostumado com essa estética um pouco mais agressiva do que o convencional, mas ao mesmo tempo não tão violenta assim.

o disco termina abruptamente. condução, que encerra, é pouco mais de um minuto de espaço sonoro saturado que implode sem aviso prévio de fade out. Só um corte bruto. fica no ar o embaralhamento das demarcações de fronteira entre ruído e silêncio e o desvelamento da (contra-)invenção do silêncio, como uma construção dialógica à Música (com maiúscula).

a impossibilidade do silêncio levantada por cage em 4'33'' e a percepção dos sons pequenos após horas da escuta linear de peças como transamorem trasamortem, de eliane radigue.

cássio: a última faixa é a condução. e ela foi realmente uma saturação total do som. no processo de gravação de edição do som e de produção mesmo, ela me lembrou muito o som que eu ouço de uma forma bem estática no ônibus. não sei, acho que esse corte tem menos a ver com uma relação temporal de final e mais com essa saturação de máquina e de motor e que tem uma dinâmica muito própria. se você ouve por muito tempo aquilo ali se torna parte do silêncio. e eu tenho percebido bastante isso. eu trabalho numa subway e no final, na hora de fechar a loja, a gente tem que desligar todos os motores. e eu percebo que o silêncio que eu tava ouvindo não era realmente silêncio. aquilo se tornou tão parte da paisagem sonora por tanto tempo, que meio que outros sons que tem uma dinâmica mais trabalhada tomavam uma forma muito mais viva e mais abafada. mas esse abafamento acabou se tornando natural e não era. é sempre um choque muito grande quando vou desligar os motores.

 
 
 

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