fascínio diante da morte: lucas pires, mortuário e aka mortuário
lucas pires na capa de c32, do aka mortuário. foto: aleta valente.
desde criança a morte exerce fascínio sobre lucas pires. ele lembra vividamente de quando, em meados de 1997, achou um livro de medicina legal na estante do primo, estudante de direito. "tinha de tudo lá, cara. tudo listado, todas as psicopatias, tipos de crime. e tinha uma parte de distúrbios sexuais. foi a primeira vez que eu me deparei com necrofilia. eu era bem novo, ia fazer 12 anos acho. não era nem pré-adolescente ainda. e aí eu meio que fiquei obcecado por esses assuntos", ele conta em conversa por skype.
o interesse crescente do garoto sobre questões ligadas à morte – principalmente o que acontecia com o corpo após a morte – também foi incentivado por um padrinho, irmão de sua avó. "ele sempre gostou de contar histórias para assustar as crianças e sempre me provocou com esses assuntos. ele me levava em enterros de pessoas próximas e pedia para eu tocar nos cadáveres, me levava para passear no cemitério e me explicava processos de decomposição, o que acontecia depois que a pessoa era enterrada. ele atiçava muito. sabia que eu tinha interesse, então alimentava isso".
a atração e a curiosidade só aumentavam. quando via um pássaro morto, lucas colocava no bolso para "pregar peças" com as pessoas. "o pessoal tá conversando e você tira um bicho morto, como se fosse um palhaço, sei lá". recolhia gatos mortos. "eu não matava nenhum bicho, nunca tive essa pira de matar animal e acho isso um absurdo, até condeno esse tipo de atitude", salienta. "mas em niterói, quando chovia muito, rolava umas enchentes em santa rosa e aí vários gatos morriam e eu ia catando eles", continua. "eu levava pra uma casa desocupada em que morei até os seis anos. fiz uma cópia das chaves e eu levava esses animais pra lá. e era uma doideira porque eu ia lá sozinho várias vezes, à noite, só pra ficar ali vivendo aquela parada e depois voltava pra casa normalmente".
tudo isso era compartilhado e até mesmo amplificado entre seu círculo de (poucos) amigos, por sua vez também interessados em coisas insólitas e esquisitas. "eu convivia com pessoas que estavam numa mesma frequência que eu. eram poucas pessoas e cada um tinha uma pira. tinha um amigo que tinha essa pira com excrementos, ele acumulava garrafas de coca-cola de 2l com cocô e mijo dentro. era uma troca que rolava ali. uma troca muito baixa, energeticamente falando. era uma galera que transitava por assuntos que eram tabu".
"um livro de medicina legal, suicídios, a convivência com um dependente químico, desestruturação familiar, autodestruição, pouca idade e um interesse profundo por assuntos negativos"
ao ser expulso do colégio na 7º série ("por umas coisas erradas que fiz", menciona, superficialmente), lucas parou de estudar. assim lhe sobrava tempo livre para explorar niterói, cidade onde nasceu e cresceu. dividia seu tempo entre o cemitério público de maruí e o campo de são bento, que era habitado por skatistas e pessoas da cena musical local. no meio dos anarcopunks, ele foi tomando contato com as fitas cassete de bandas de punk rock nacional, como cólera e olho seco, e metal extremo, como schizophrenia do sepultura.
mas os sons não se limitavam ao rock. "tinha um rolê de música eletrônica também. o pessoal ouvia pra caralho jungle, um estilo de música eletrônica acelerada. em niterói sempre rolou muito som, então não tinha essa coisa bitolada de estilos musicais. era uma coisa muito aberta. mas eu preferia a música eletrônica".
o gosto pelo eletrônico manifestou-se na escolha de seu primeiro instrumento. ao invés de uma guitarra, baixo ou bateria, em 1999 lucas comprou um sintetizador roland xp60. envolto na cena underground, ele já tocava em bandas desde os 12 anos. a primeira delas se chamava ejaculation. "na verdade nunca rolou nada, era mais uma ideia da banda", pontua.
com o sintetizador em mãos, ele produziu o seu primeiro álbum: intestino, um disco solo, com colagens sonoras feitas com samples e loops de fitas cassete de blues, áudios de curso de inglês e diferentes músicas. posteriormente, com o projeto fábrica de pessoas físicas ("era eu solo, sempre sozinho"), lucas lançou em cd-r o álbum freiras e ladrões, onde trabalhava essencialmente com música experimental de ruídos, sendo o japonês merzbow a sua maior referência. só depois ele combinaria a música com o seu interesse obssessivo, fascínio e deslumbre pela morte.
mortuário: necrofilia/propaganda
o ano de 2003 foi traumático para lucas, então com 18 anos. rodrigo e marcos, dois amigos que ele fizera na rua, cometeram suicídio. sua família, se desestruturando, convivia em casa com um dependente químico.
"o clima era muito ruim", conta, sem rodeios. "era uma pessoa próxima viciada em cocaína, então envolvia muita paranoia. eu passava a noite acordado com receio de dormir e acontecer alguma coisa, então eu ficava gravando. virava noites e noites gravando no meu quarto. eu gravava as fitas com atividade dessa pessoa em casa, em meio a essa movimentação de ir pra rua comprar mais pó, entrar e sair do banheiro, ficar loucaço. às vezes ele até ia no meu quarto pra falar comigo e dizia coisas que não faziam nenhum sentido. e a irmã dele estava na minha casa tratando de um câncer. era todo um clima muito pesado".
foi nesse contexto de tensão, isolamento, perdas e, nas palavras do próprio, transformação que surgiu o mortuário, projeto musical no qual lucas pires expressou toda a sua angústia pessoal. lançado em fita cassete, o álbum necrofilia/ propaganda (2003) é uma compilação de experimentos sonoros, ruídos e depoimentos chocantes retirados de programas de rádio e jornalismo policial, tudo processado e destorcido por efeitos do teclado. o disco foi relançado pela toc label (de cadu tenório e thiago miazzo) em dezembro de 2012.
houve aí uma guinada em suas referências, com merzbow indo para segundo plano e emergindo com força a influência do death industrial do atrax morgue, projeto do italiano marco corbelli. lucas conta que conheceu o atrax pelo soulseek, através de mário brandalise, músico curtibano por trás do yersiniose.
"eu conheci o mário brandalise no soulseek. fui baixar um disco do noturnal emissions e eu achei com o mário. ele tinha o nick adipocera, que é um processo de decomposição muito específico. e eu sabia o que era adipocera, então a gente iniciou uma conversa e se conheceu assim", narra. "a gente trocava muito arquivo, ele me mandava muita coisa. e ele tinha uma pasta do atrax morgue. eu baixei o primeiro, in the search of death (1993), que é uma fita cassete e eu fiquei muito, muito impressionado com aquele som. fiquei ouvindo por dias seguidos. sabe quando você reconhece uma coisa no som, uma coisa que te agrada? aconteceu isso comigo com o atrax morgue. e aí eu comecei a baixar tudo do atrax, fiquei meio obcecado. foi uma referencia muito forte, não só o atrax mas também maurizio bianchi, as coisas que saiam pela slaughter productions..."
necrofilia/propaganda trata de assassinato, psicopatia, masoquismo e outros temas afins. primeiro delírio traz o áudio (retirado diretamente de um vhs) processado de uma reportagem sobre chico picadinho, serial killer que esquartejou duas mulheres em meados dos anos 1960. domínio sexual, a única faixa com letra (parceria com mário brandalise), tem um fundo ruidoso enquanto uma voz sombria sussurra coisas como "você está sob o meu domínio/ te matar é prazeroso".
lucas experimentou enterrar as k7s em que gravava para obter um novo aspecto sonoro através da decomposição da fita. assim unia forma e conteúdo, criando um efeito sinestésico entre o som deteriorado e, como ele aponta, "o aspecto monstruoso/irreconhecível que o corpo adquire durante o processo [de decomposição] que termina com uma pilha de ossos".
olhando de hoje, ele enxerga o mortuário como "um jeito de ocupar minha cabeça, de pegar tudo isso, de falar mesmo de paranoia. falar de verdade. falar de decomposição andando com bicho morto no bolso, falar de morte passando o dia no maruí, cemitério que tem um cheiro péssimo".
"acho que tudo era muito real pra mim", continua. "e isso foi meio que naturalmente moldando o processo [de enterrar as fitas]. eu era só um moleque fazendo uma coisa assim sem pensar. eu tinha o desejo de realizar e tava realizando. não pensava, só fazia. existia um princípio que era a coisa temática e a obsessão, mas eu só fazia, não tinha preocupação com registro".
em meio a esse turbilhão emocional e psicológico, pode-se dizer que a morte funcionava como um fetiche? "sempre foi um fetiche porque, sim, eu sentia certo prazer sexual, sabe? essa ideia de acumular fotos e arquivos de pessoas mortas e colecionar histórias vem desde pequeno, com os filmes de terror, de ficção científica e depois com assassinatos de verdade. então funcionou sim como fetiche. era um assunto central de tudo que eu fazia. e era um contexto que eu vivia na época. e aí acho que eu explodi tudo, chegando no limite de experimentar até onde eu podia com autoerotismo, automutilação, com esses animais mortos, esses ambientes com cadáveres, o mal cheiro do maruí", afirma.
ressuscitando os mortos: aka mortuário
depois dos colegas rodrigo e marcos, o suicídio cruzaria de novo o caminho de lucas. ele enviou cópias de necrofilia/propaganda para marco corbelli, do atrax morgue. o italiano escutou e gostou daquela atmosfera sombria e mórbida e os dois passaram a manter contato desde então.
"lembro de um email dele falando: ‘eu já ouvi três vezes e gostei’. eu estava prestes a iniciar uma negociação pela slaughter productions [selo fundado por corbelli] e tava muito empolgado com essa possibilidade. a gente se correspondia via email e do nada ele sumiu. então mandei um outro email puxando papo e a mulher dele na época respondeu dizendo que ele tinha se matado".
o suicídio de marco corbelli, em 2007, impactou lucas profundamente. "dois amigos meus já tinham se matado, então bateu uma sensação horrível de que eu tava envolvido tão fundo na coisa que as pessoas estavam se matando do meu lado. eu fiquei muito mal. eu me vi no lugar dele, entende? tipo, chegando num ponto de um aprofundamento tão grande que morrer ia fazer parte da coisa toda. e eu não gostei. eu não gostei desse lugar e aí parei. eu parei de tocar total, comecei a dedicar a minha profissão, voltei a estudar, entrei pra faculdade".
lucas pires com o dedo na instalação delivered in voices, de tunga, no novas frequências em 2015
vivendo na capital do rio de janeiro, lucas só voltou a tocar em 2010, como membro do coletivo audiovisual dedo - fizera algumas apresentações de improv no plano b. ele levou outros seis anos para ressuscitar o mortuário. em junho de 2016, ele lançou pela seminal records o álbum c32 , desta vez sob o nome de aka mortuário.
lucas de fato não pensava em remontar o mortuário. mas depois de dois crimes chocantes, ele sentiu "a necessidade de voltar a falar sobre esse tipo de coisa". o primeiro foi o assassinato de alan de souza, um menino de 11 anos que foi torturado e morto no alto da boa vista (bairro de classe alta na zona norte do rio) por supostos seguranças do jockey club brasileiro, na gávea. a mãe de alan contou que, quando foi reconhecer o corpo no instituto médico legal (iml), percebeu que as duas mãos da criança estavam perfuradas pro pregos. havia mais dois pregos no crânio e todas as unhas do pé e das mãos foram arrancadas.
"era um crime absurdo. uma criança foi torturada e morta. durante um tempo eu morei na barra e eu passava pelo alto da boa vista pra ir pro trabalho. então inevitavelmente eu me colocava naquela situação de estar andando ali e encontrar o corpo dessa criança. aquilo mexeu muito comigo porque sou pai e é forte demais se deparar com uma coisa dessas".
o outro crime que o impactou foi o caso de vania rocha, que assassinou o ex-namorado durante o sexo com 11 facadas, em rondônia. ao confessar o crime, ela afirmou que "queria matar alguém. não me arrependo". e completou: "olhei no olho dele até ele morrer".
"a maioria dos crimes são cometidos por homens. além disso, me chamou atenção a interação no facebook de uma criminosa [o perfil dela foi descoberto e lotado de comentários do tipo 'louca, psicopata, parece que estava possuída pelo demônio']", comenta. "e também a persona dela, por terem culpado uma parte do crime pelo estilo de vida que ela levava, porque ela tava frequentando cemitério etc – como se isso fosse motivo pra cometer o crime", acrescenta.
o álbum c32 é todo em referências a estes dois casos, incluindo gravações dos depoimentos de vania. o disco foi gravado em mono e submetido a posterior processo de perda de qualidade da fita original, mas o trabalho foi diferente do necrofilia/propaganda.
há também uma diferença substancial no modo como aquele lucas pires isolado em niterói e o lucas pires de hoje abordam a morte. não é mais um fetiche adolescente, envolto em mistério, e sim uma metáfora da condição humana. a vida pessoal de lucas é refletida em sua música e aponta a trilha de amadurecimento e autoconhecimento que refletem a própria história do músico.
"o primeiro mortuário surge num momento de perdas pessoais que foram bem transformadoras. um livro de medicina legal, suicídios, a convivência com um dependente químico, desestruturação familiar, autodestruição, pouca idade e um interesse profundo por assuntos negativos. a diferença entre o primeiro e o segundo é a maturidade pra lidar com essas perdas que nunca deixam de existir, saber usar sem ser engolido".