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arte como laboratório de liberdades: 20º festival sesc_videobrasil


https://vimeo.com/121726579

homens enfileirados cobrem o rosto com a camiseta da seleção brasileira de 1970 enquanto, ao fundo, um narrador lê a lista de mortos e desaparecidos políticos do mesmo ano. desvelando a face oculta de um brasil e tensionando as disputas de poder da narrativa historiográfica oficial versus o apagamento da memória, o vídeo morte súbita, do artista paulistano jaime lauriano, é emblemático das questões levantadas na panoramas do sul, a mostra do 20ª festival de arte contemporânea sesc_videobrasil, em cartaz até 14 de janeiro no sesc pompeia, em são paulo.

composto a partir de seis eixos conceituais – cosmovisões; ecologias; histórias invisíveis; reinvenção da cultura; políticas de resistência; e outros modernismos – o festival consolida a sua proposta de amplificar a produção do que conceitua como “sul global”, fora da hegemonia tradicional do circuito de arte. “a emergência de novas narrativas, que reivindicam espaço e lugares de escuta, e o movimento intenso de reconfiguração sociopolítica são características destes tempos, marcados pela iminência da crise em todos os âmbitos”, escreve a curadora-geral solange o. farkas no catálogo da exposição.

discutindo uma nova narrativa, jaime lauriano, por exemplo, propõe, como aponta o título de uma palestra que ministrou no festival, pensar “a identidade nacional como apagamento histórico”, fruto de uma articulação de violências concretas ou simbólicas contra a população negra – etnocídio, mestiçagem, uma suposta democracia racial, epistemicídio da cultura etc. “tanto à direita quanto à esquerda, a história é construída em cima de um epistemicídio. mesmo a esquerda progressista, buscando a igualdade, ainda faz buscando a mão de obra, e não igualdade na forma de construir saberes”, comenta o artista, numa conversa no galpão do videobrasil, onde está em cartaz a mostra agora somos todxs negrxs, com uma obra sua. “o problema do brasil não é o da corrupção, não é o de classes: é um problema da escravidão, porque ela perpassa todas as bandeiras. é patrimonialista, patriarcal, racista e transfóbica”.

ainda nesta “virada” do olhar, o trabalho de graziela kunsch é outro ponto brilhante. ela filme o ensaio do grupo feminino de maracatu ilú obá min, mas o vídeo, em vez de mostrar diretamente as mulheres tocando, mostra como os moradores de rua recebem o som dos tambores, dançando e fazendo pose para a câmera. isto é, como o entorno é impacto e transformado.

na busca de outras representações e de delírios estéticos, emo de medeiros borra as fronteiras da “tradição” e “vanguarda” com a videoinstalação em três telas kaleta kaleta (baseada na tradicional dança infantil das crianças do benin) e mais notadamente na série vodunaut. nesta última, capacetes de motociclistas são cobertos por búzios, que na religião tradicional do benin, ele me explica, simbolizam “viagem”. dentro dos capacetes há um monitor com representações do imaginário da ficção científica, em um cruzamento entre mitologia e cultura ocidental em um fluxo afrofuturista.

enquanto converso com emo, ele questiona “você pode pensar uma arte conceitual que não seja etnocêntrica? para mim, a resposta é sim. porque eu acho que um dos [meus] interesses em usar a tradição não é ilustrar o folclore africano que é usualmente desejado pelo mercado da arte – um pouco naïve e blá blá blá, coisa que eu realmente não gosto. é mais para dizer que, usando alguns elementos ancestrais, é permitido descentralizar o foco e a perspectiva e possivelmente, espero, romper com o etnocentrismo”, avalia.

em paralelo, a dupla bárbara wagner e benjamin de burca e seu vídeo faz que vai trata o embaralhamento entre as esferas do folclore e do pop no movimento de quatro dançarinos. eles dançam ao som de frevo, mas misturam passos do ritmo carnavalesco que tornou-se patrimônio imaterial da humanidade com os passos sexualizados do estigmatizado bregafunk, reinventando a cultura em seus corpos. é um desdobramento da pesquisa iniciada com o curta estás vendo coisas, que em janeiro foi selecionado para o festival de berlin. “tradição é conhecimento que é trazido de outro lugar ou outro tempo. eu e o benjamin estamos mais interessados no presente. então a tradição só funciona para nós enquanto uma expressão que é ‘traída’ pelas formas do presente”, destaca bárbara.

ela enfatiza também o trânsito realizado pelos quatro bailarinos do vídeo (dois homens, uma mulher trans e uma drag queen) entre contextos e situações sociais. “eles transitam de uma maneira surpreendente muito livre entre as classes das quais eles fazem parte. as questões de gênero e de raça não são os primeiros assuntos no nosso trabalho, eles estão ao lado. é como se a gente não tivesse como falar desse sujeito sem falar disso. e o frevo vem como uma coisa que une os quatro personagens, uma forma meio comum de se expressar, de construir uma espécie de identidade que é móvel, instável. por isso que o nome é faz que vai, esse movimento que parece que é uma coisa, mas não é. a gente queria falar dessa instabilidade entre estes estados que a gente pensa que são permanentes: a tradição e o pop; o masculino e o feminino; a classe popular e a classe média”, sublinha.

muito além de uma denúncia, os trabalhos de jaime lauriano, emo de medeiros e da dupla bárbara wagner e benjamin burca e os demais artistas do festival como um todo são anúncios de possibilidades, a proposição de perspectivas subjetivas de um outro mundo. revisão histórica e visão do futuro confluem em um só, como lauriano reforça. “passado, presente e futuro são comungados no mesmo tempo. na maioria das religiões afro-brasileiras se começa o culto saudando os velhos e as crianças que vão vir. eu penso a arte desse jeito também”, afirma. “a minha responsabilidade é com os que já morreram (foram muitos que morreram para eu estar aqui falando) e ela não acaba em mim. é uma abertura de caminho, uma trama para poder trazer outras pessoas. acho que a arte tem essa vantagem dos outros campos de luta política porque ela cria ficção, imaginação e aponta para um futuro – sem necessariamente ser o elemento construtor desse futuro. é um laboratório da liberdade”.

memórias e modernismos premiados

o 20º festival de arte contemporânea sesc_videobrasil anunciou os artistas e obras premiados pelo júri (composto por nove curadores e críticos de todo mundo). o duo bárbara wagner e benjamin e seu vídeo faz que vai foram um dos vencedores do prêmio de aquisição acervo sesc de arte, recebendo r$ 25 mil e passando a integrar o acervo do sesc são paulo.

os outros vencedores da categoria foram a portuguesa felipa césar com transmission from deliberated zones (um vídeo poético-fictício sobre a guerra de libertação da guiné-bissau) e o vietnamita quy minh truong com vuon bau xanh toi (que traz os relatos de um velho agricultor sobre a carnificina que testemunhou na guerra cambojana-vietnamita, como uma vala comum de 1km com corpos sendo devorados por bichos do pântano).

o prêmio o.f.f., de r$ 25 mil, concedido pela fundação ostrovsky family fund (eua/israel/ brasil), foi entregue a jaime lauriano (brasil, são paulo). também houve premiação de residências artísticas em uma série de instuições culturais: a paulista graziela kunsch (no ujazdowski castle centre for contemporary art, na polônia); o dominicano engel leonardo (no kyoto art center, japão); o duo de artistas e cineastas colombianos la decanatura (pro helvetia, suíça); o beninense/francês emo de medeiros (vila sul do goethe-institut, brasil) e a indiana natasha mendonça (wexner center for the arts, eua). o mexicano andrés padilla domene recebeu uma menção honrosa.

afinado com a curadoria da mostra, percebe-se entre os premiados o interesse com a memória e história e a reinvenção de representações. outros projetos de modernismo. a série pisos, de engel leonardo, por exemplo, revisita o projeto de azulejaria feito por flávio de carvalho para o monumento farol de colombo, na república dominicana, que celebraria um espírito de pan-americanismo – e acabou por ser o oposto, rementendo à colonização e evangelização.

outro lumiar da mostra é a reinvenção de naturezas e biologias, objetos em mutação. na instalação orgy mathematics, de mariana portela echeverri, sobrepõem-se esculturas mecânicas e estáticas; produtivismo e anarquia; racionalidade e onirismo; a fucking machine e desenhos infantis em um só espaço tentacular. o pakui hardware traz um jardim-laboratório em lost heritage, tensionando o sintético e o natural: restos de animais mortos (?), lâmpadas de led, rolos de grama sintética, bomba d'água. uma microbiologia sintética - o devir de uma bioestesis?.

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