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entrevista: marco scarassatti - rios enclausurados, ordinário e extraordinário


várias cidades cortam a Cidade, aquela oficial. há oum outro: outras rotas, outras vidas, que se instalam debaixo do olhar. estão nas sombras, no subterrâneo, cortando as entranhas. não são negligenciados ou ignorados. não são nem mesmo percebidas. experienciar o espaço urbano envolve jogos de poder, em extratos micro ou macropolíticos, que desenham os fluxos e a partilhas do espaço urbano sensível.

e em meio a isso há os apagamentos. recortes dos possíveis tempo e do espaço: o que ouvimos, vemos, sentimos, tocamos? quem tem capacidade para ver? quem tem capacidade para falar sobre? essas são algumas das tensões sublinhadas em rios enclausurados, disco do artista sonoro-músico marco scarassatti. conversei com ele por email, buscando levantar os contornos políticos do disco e provocar algumas questões sobre o processo de "gravação de campo".

rios enclausurados "belo horizonte possui aproximadamente 150 km de córregos e rios canalizados, escondidos da população em verdadeiros calabouços subterrâneos que só são percebidos pelas grades expostas no asfalto das ruas. na cidade, estas grades estão em toda parte. ao nos aproximarmos delas, o canto do rio timidamente transpõe os limites da cela, mas sua sonoridade é engolida pelo trânsito e outros sons urbanos."

cidades invisíveis, por ítalo calvino

"ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos"

como você chegou na ideia do rios enclausurados? o trabalho é fruto de uma pesquisa

maior sua ou é um projeto pontual?

scarassatti: no meu primeiro ano em belo horizonte, numa deriva a pé pela cidade, escutei um som de rio no meio do asfalto. cheguei perto de uma grade que fica no meio da rua e vi ali embaixo um rio, pra minha total surpresa. comecei a reparar que essas grades, ou respiros, estavam por toda

parte na cidade.

iniciei um projeto de gravação dos sons desses rios e córregos urbanos. queria muito fazer com

que a cidade escutasse aquilo que estava debaixo do asfalto, debaixo dos nossos pés. a idéia, em princípio era fazer uma intervenção sonora em que esse som fosse amplificado por toda a

cidade. quase um ano e meio depois, conheci o fernando ancil e começamos a trabalhar juntos

na ideia de uma instalação. nessa época a rosangela tugny, professora de etnomusicologia da

ufmg, indicou meu nome para uma exposição coletiva que estava sendo organizada pela

renata marques e que se relacionava com a ideia de intervenção na cidade. chamei o fernando e propusemos rio, que se tratava de uma instalação com os sons dos rios captados, difundidos pelos alto falantes de uma grande avenida de bh. era um rio aéreo, de aproximadamente 300 metros e que ficou por três meses fazendo transbordar o som desses rios enclausurados.

um tempo depois, o henrique (iwao, da seminal records) deu a ideia de fazer um cd com esses sons. isso me interessou porque pra mim abria a perspectiva de pensar o som desses rios como cantos agonizantes de um prisioneiro, ao mesmo tempo em que, de onde eu gravará, isto é, de dentro da galeira, era como se dali, o rio escutasse a cidade, visse a cidade, era sua realidade possível. compus com esses sons desses vários rios, uma peça contínua que se transforma em densidades e escutas dos sons urbanos.

para você, o que o som desses rios transmitem? me parece que um dos pontos do álbum é

um conflito entre natureza (as águas) e cultura (o som dos carros que "vazam" nas gravações). e ainda, a natureza remetendo a uma 'pureza' em oposição ao caótico urbano. esse era um interesse? como analisa isso?

scarassatti: não há uma ideia de pureza envolvida, o rio corre por tubos de concreto e não soa como rio, ou como um rio idealizado. agora, está sim posto um conflito entre natureza e cultura. o rio está sim em conflito com a cidade e com seus processos de urbanização e metropolização, é um preso

político desse processo. ele foi apartado da convivência com a cidade, porém a escuta como um

prisioneiro mesmo, ou como o prisioneiro da caverna do platão. de onde ele está, os sons da

cidade chegam até ele pelos respiradores, como rumores da cidade. ele permanece contínuo enquantos esses sons que "vazam" se alternam, transpassam algumas vezes sem permitir uma apreensão da forma, do que é que produz aquele som. pra mim ele é um prisioneiro persistente, que canta pra se manter vivo e pra ser descoberto e ser restituído ao seu curso natural.

complementando a pergunta anterior, como você avalia o significado político-estético do rios

enclausurados?

scarassatti: pra mim, o que está posto nesse e em tantos outros trabalhos que abordam esse mesmo tema é a percepção e confrontação com esse modelo de cidade e de metrópole que se estabelece em torno do paradigmas econômicos e da relação com o trabalho, pura e simplesmente. não interessa a perambulação, não interessam os desvios, não interessa um rio que impede que se

construam ruas e avenidas para que os carros garantam o ir e vir pro trabalho. não interessa um rio

pra que as pessoas possam se banhar, brincar, ou melhor, não interessa que o rio partilhe da

convivência com as pessoas da cidade. trazer à tona o som do rio é trazer à tona um modo de fruir a cidade, é um modo de estar e atuar na cidade e isso é política, um modo de organizar as ações, as percepções, o sensível num processo contínuo de troca, de partilha e de confronto.

"trazer à tona o som do rio é trazer à tona um modo de fruir a cidade, é um modo de estar e atuar na cidade e isso é política, um modo de organizar as ações, as percepções, o sensível num processo contínuo de troca, de partilha e de confronto".

o trabalho de field recordings, no geral, tem uma relação ou mesmo proposição de um desvelamento da experiência sensível cotidiana. parece que essa é também uma das reivindicações do rios enclausurados também, de desnudar uma fatia do real. concorda? qual sua visão sobre o tema?

scarassatti: eu tenho um pouco de dificuldade de usar o termo field recording, porque ainda não me parece claro que a terminologia dê conta da intencionalidade na construção de um espaço sonoro via

gravação, ainda que ela esteja vinculada por sua natureza ao real. a relação da captação com o

real cria uma outra coisa, impregnada sim pelo real, mas também pela escolha do microfone,

posicionamento e características acústicas da própria gravação.

no rios enclausurados, o real é desnudado, mas pra ser desnudado ele foi pensado, editado e

amplificado para dar relevo a esse real. são sons de alguns rios, que dão a impressam contínua

de um rio só, é o desvelamento da experiência sensível do cotidiano, porém como uma

construção poética e política de um espaço sonoro.

 

um recorte: aqui é interessante dialogar com a visão de aki onda sobre seu trabalho com gravações de campo, em entrevista a bernardo oliveira no festival novas frequências: I’m like a magic realist, however. I’m interested in creating an alternative reality from the concrete sounds I corrected, which appear as if a new image or an experience alien to me. I’m not interested in re-producing the reality itself. I assume my composition/performance doesn’t have a sense of documentary, although the flow may be suggest some sort of ambiguous fictional story, manipulated by the imaginations of both myself and the audience.

 

um ponto de debate frequente na, digamos, "música experimental", é a transposição dos limites

e distinção entre arte e vida. trabalhando com gravações de campo e sons ambientes, este

tema é um dos seus interesses?

scarassatti: esse é um ponto bem interessante. acho fundamental transformar o ordinário em extraordinário, mas ao mesmo tempo dessacralizar o fazer artístico como algo excepcional na vida. eu tenho pensado cada vez mais, idealmente, em opor a arte ao trabalho, pra pensar o que seria estar no mundo pela arte.

uma coisa que acho intrigante, e até comentava com o j.-p. caron, é a separação

entre músico e artista sonoro. na sua opinião, o que difere um do outro e como você se

enquadra?

scarassatti: eu penso que o conceito música se constitui e se transforma pelos e nos processos e produtos socioculturais concebidos para afetar a nossa escuta, seja fisicamente, como perturbação

acústica, ou mesmo conceitualmente. isso nada tem a ver com essa instituição fascista música, que controla, vigia e pune, normatizando o que é e o que não é música.

eu não vejo hoje distinção entre artista sonoro e músico. isso porque, hoje, as práticas que

envolvem e afetam a nossa escuta são bem mais amplas, do sound design, passando pela

radioarte, pelos performances de dj's, pelas obras de arte sonora até mesmo aquilo que é

socialmente aceito como música. acho que se o termo música não dá conta disso, devemos usar arte sonora, que é, ou deveria ser mais inclusivo, incluindo a própria música. é lógico que essa discussão envolve territórios estabelecidos e há também uma disputa de campo e conceito entre músicos e artistas visuais na determinação do que é arte sonora. eu, particularmente, gosto de me identificar como compositor e artista sonoro. embora eu tenha muitos conflitos com a ideia de compositor, acho que tem algo do gesto compositivo, ou decompositivo, que acaba por determinar tudo o que faço.

para você, o rios enclausurados é um disco de musical (ou musical)?

scarassatti: rios enclausurados é disco musical. foi concebido como tal.

como fica a posição de um artista que trabalha com gravações de campo? gravar sons de

ambiente, sem manipulação, ainda mantém o artista como "criador" ou se estabelece um outro tipo de relação?

scarassatti: certa vez, eu fiz uma experiência com alguns amigos. eu estava na graduação em composição na unicamp e lá, durante os meses de setembro e outubro, escuta-se muito o canto das

cigarras. eu convidei esses amigos a assistirem uma nova música minha, sentamos nas mesas

no jardim do instituto de letras e ficamos lá. eles sentados à espera da música, eu sentado

também sem iniciar qualquer performance. em determinado momento, um amigo percebeu a

intenção e chamou a atenção para os sons da cigarra. considerei que a música começava ali.

acho que esse exemplo diz respeito à intencionalidade e no deslocamento do ordinário em

direção ao extraordinário. as cigarras estavam e estariam lá, independente da minha

'composição', mas efetivamente o que se estabeleceu foi um pacto entre a minha intenção e a

percepção deles para esse momento de excepcionalidade da escuta, provocada por um artifício.

não digo que toda gravação de campo é artística, ou tem quem grava como criador, mas quando

isso diz respeito à intencionalidade e artifício dele em fazê-lo, ou quando se estabelece um pacto

de escuta em que se considera como tal, pra mim está feito.

você também lida com sessões de improvisação. fico me perguntando sobre a questão da

gravação. gravar um improviso, e ouvi-lo como um álbum, com suas faixas, dando uma forma, não vai contra o princípio de espontaneidade e insurgência do improviso?

scarassatti: há um ano e meio, mais ou menos, iniciei um projeto de diário de improvisações, ou melhor dizendo, o improviso-diário, em que tomo a improvisação como uma escrita quase confessional, circunstrita a um ambiente íntimo, dentro da minha casa, mas inserido num ambiente maior que é o bairro em que moro. esses elementos estão presentes nas gravações que, nesse caso, é o suporte para inscrever minha relação com os sons dos arredores, na mesma medida em que

toco meus instrumentos. mais uma vez está em jogo entre o ordinário, o cotidiano, com o

extraordinário, a criação nessas condições. gravar a improvisação, nesse caso, tem, por um

lado o mesmo gesto diante de uma 'gravação de campo'. por outro lado, há o gesto de me

colocar diante deste campo, vivendo e interagindo com ele. esse é um ponto, em relação a sua

boa provocação. eu procuro incorporar cada vez mais a gravação à ideia da improvisação e

faço o mesmo com a edição e mixagem desses materiais.

quando opto por gravar mais de uma vez no dia, sobreponho improvisações e crio caminhos de escuta, como se fora uma deriva de escuta no material gravado. nunca deixo pra editar no dia seguinte, é parte da ação, assim como preparar a sala, dispor os instrumentos, escolher como gravar, tocar etc. antes eu tinha resistência à lançar gravações de improvisação como álbum. hoje eu penso que é parte de uma atitude diante do fazer musical, diante dessa cadeia produtiva musical. mais que

isso improvisar, pode vir a ser um modo de estar no mundo e, nesse caso, não se perde a

espontaneidade ou insurgência do ato, incorpora-se o que está à volta para empenhar num novo momento insurgente.

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