abdala, universos sonoros, vidas severinas
- GG Albuquerque
- 30 de mar. de 2016
- 8 min de leitura

a música do goiano bruno abdala trabalha na categoria de lugar. seus discos operam sempre com a criação de um universo sonoro imersivo recheado com detalhes mínimos. zuuum, o seu álbum mais recente, é mais um passo nesse caminho. o projeto multimídia é uma parceria os músicos iago mati, de são paulo, e o conterrâneo kboco foi apresentado na mostra música e audiovisual na olido, em são páulo, organizado pelos selo brava e submarine, e lançado como disco pela propósito records (fundada por abdala).
o texto de apresentação do álbum resume a reunião entre os três artistas como uma forma de "criação de um ambiente onde as similaridades do sertão brasileiro e da áfrica subsaariana — cores, texturas, crenças e sons — moldem o surgimento de um novo universo em som e imagem".
o álbum tem como pano de fundo formas musicais eletrônicas minimalistas e repetitivas — abdala ressalta aqui a influência de gente como steve reich, can, neu! e silver apples. a partir disso, ele lança sutilmente samples de sons ambientes (pássaros, água, ventania), cantos do congado, aboios, garimpeiros de serra pelada e trechos do disco sons da transamazônica. zuuum constrói-se como um desenho sonoro, paisagem imaginativa e mística desse entrelugar de sertão, áfrica, amazonas. ou na definição do próprio: "um poder natural existente em cada um dos seres vivos, uma força bruta e cristalina que emana de nossos corações".
"por estar mergulhado nessa busca por gravações de música tradicional, eu segui adiante tentando criar um panorama místico dos interiores do brasil", diz abdala, que nasceu no município de catalão, interior de goiás. "não sei muito bem se consegui, mas tem a ver com solidão, fé, a natureza conversando com o homem mais do que o homem conversando com a natureza e os processos de manufatura que ainda persistem (cada vez menos) na vida interiorana (por isso o uso dos garimpeiros)", completa.
na faixa zuuum #9, há uma entrevista com o vaqueiro seu gregório. analfabeto, sem escola, sem hospital, "já acostumado" com o açoite, com a exploração e com a miséria. conformado: viúvo, não levou a mulher ao médico "porque quem tem de morrer num..." como o fabiano, de vidas secas, mal consegue se expressar, massacrado pela vida seca. mais uma entre tantas vidas severinas.
a beleza e a aridez da vida sertaneja é ponto transversal da música de abdala. for those who came from nothing, lançado no final de 2014, tem como tema o êxodo rural, a despedida do sertão. "esse trabalho é sobre a experiência de deixar para trás os amontoados da vista, as lembranças, a fé e as histórias vividas. para quem veio do nada e para quem ainda segue por ele", escreve na apresentação do disco. assim como o zuuum, é um álbum que reúne a música tradicional com o drone meditativo.
"eu venho da periferia de uma cidade que tem uma tradição musical forte, que são as congadas. então isso tá dentro de mim, querendo ou não. tanto no sétima como e no catalão [discos anteriores] eu consigo enxergar a presença rítmica dessa vivência no resultado final das composições, a grande diferença é que nos trabalhos que vieram depois essas influências começaram a saltar mais em relação a começar as composições a partir delas e não o contrário", aponta o músico. "eu nunca fiz nada na intenção de ser um resgate das tradições pelo fato de nunca ter considerado que eu deixei de viver isso. entende? mesmo me vendo com um cara que comete blasfêmias ao fazer isso porque eu vou muito pela emoção que a expressão me causa", avalia.
compondo diálogos entre as tradições, abdala procura encontrar um caminho próprio. trata das permanências, memórias, resquícios. as ruínas de uma casa grande que ainda está presente. "eu tô há anos luz de ser um jazzista, um improvisador, um homem da música livre, enfim. mas tem uma coisa que todo esse pessoal que vive isso fala e que eu acredito muito que é a questão de achar a própria voz. eu não lembro quem era, mas eu lembro de uma vez algum jornalista perguntar pra um jazzista o que era o jazz e o cara responder 'o jazz é a pessoa por trás do instrumento'.
for those... é também um disco mais narrativo, quase como uma história. "foi o foi o primeiro trampo que eu já sentei sabendo o que queria contar", explica. "eu tinha começado a viajar bastante nessa época e tava voltando a ter uma relação maior com o pio gomes (bairro que cresci) no interior de goiás. em paralelo a isso eu conheci pessoas aqui em goiânia mesmo e em outros lugares que eu passei que saíram dos seus locais de origem e foram viver o mundo. o comum de todas essas pessoas era o sentimento de derrota em relação à vida e isso é muito foda. muita gente saiu de um lugar em que as coisas não estavam boas e foram acabar em outro lugar onde, por mais que tenham ganhado mais dinheiro, a sensação de tristeza era muito maior", afirma.
entrevista (ou a parte que não entrou no texto acima) como a próposito começou? quando foi que você teve a ideia de formar um selo ligado ao experimental e como ele atual localmente em goiás? benke (da boogarins) me falou que você foi o primeiro cara a organizar esses eventos lá, muitas vezes tomando prejuízo. abdala - acho que pra falar do começo da propósito é preciso levar em consideração uma série de questões pessoais e não pessoais. na época que eu comecei a me envolver com produção em goiânia a cidade vivia um período de transição que tava saindo do underground (aquilo que as pessoas viveram no fim dos anos 90, início dos 00) e abraçando essa nova classe média consumidora que hoje em dia é capaz de lotar um lugar sem ninguém comprar um disco sequer. paralelamente a esse cenário transitório, nós (eu e alguns amigos) começamos a organizar algumas produções. fizemos algumas edições de uma feira de disco e produzimos alguns shows. vieram joe lally (Fugazi), zomes (asa osborne), objeto amarelo (carlos issa), m. takara 3, m. takara solo, marginals e guilherme granado. com o fechamento do estúdio onde nós fazíamos os shows veio também a minha saída do emprego, o nascimento do meu filho e no meio disso tudo eu precisava fazer alguma coisa por mim.
mesmo sem ser punk a relação que eu tive com eles (gente que tava produzindo e lançando coisas há 10 anos ou mais) me ajudou bastante a enxergar e tentar procurar o meu caminho. teve também o fred da submarine records que um dia me falou uma coisa que eu tenho comigo até hoje. ele falou: "existe uma grande diferença entre viver disso e viver isso" e eu escolhi a segunda opção. foi daí que veio a propósito. nós (porque eu nunca faço nada sozinho) sempre corremos em paralelo aos acontecimentos da cidade. primeiro que nossos eventos são bem menores, segundo que não temos uma grande quantidade de dinheiro em mãos e terceiro que é difícil pra caralho mesmo fazer as coisas acontecerem. como essas novas casas de show tinham aberto as portas por completo pra essa nova classe média consumidora, eu tive que procurar outros lugares pra fazer os shows. eu não tinha um proposta atrativa pra esses lugares me abrirem as portas, nem era a minha intenção criar uma super balada. nós fizemos produções em casarão abandonado, sala de empresa, quintal de casa e em sala de estúdio de ensaio. o mais louco disso tudo é que sempre foi tudo ótimo, do jeito que tinha que ser. já teve show com pouco público, mas também já teve um show do m. takara solo que deu mais gente que o local aguentava, sei lá, cabiam 150 e no dia deu umas 300.

foto de beatriz perini
tenho a impressão de que tua música é muito entrelaçada com um "lugar", envolvendo a criação de um universo sonoro e imagético próprio. você pensa nisso quando compõe?
abdala - eu tô anos luz longe de ser um jazzista, um improvisador, um homem da música livre, enfim, mas tem uma coisa que todo esse pessoal que vive isso fala e que eu acredito muito que é a questão de achar a própria voz. eu não lembro quem era, mas eu lembro de uma vez algum jornalista perguntar pra um jazzista o que era o jazz e o cara responder "o jazz é a pessoa por trás do instrumento". sobre as minhas produções eu acho que ainda não tenha conseguido chegar definitivamente ao MEU SOM, mas não é algo que tenha me machucado também, eu to vivendo e buscando aprender e me achar sem fazer com que o que eu faço me torne mudo, acho que esse tem sido o meu grande desafio.
como funciona seu processo de criação? você compõe, literalmente, ou é mais a partir do improviso?
abdala - esse processo é um tanto quanto variado. a mãe do meu filho é uma pessoa bem especial, musicista de verdade, pianista, compositora e cantora e tem me ajudado bastante a pensar a composição de uma maneira melhor de um jeito meio que subjetivo até, acho que ela nem percebe. ultimamente eu tenho tentado tocar algumas horas por dia, todos os dias, seja em instrumentos eletrônicos ou não. e isso tem me ajudado a formatar melhor minhas ideias, já que eu gravo tudo que faço. o fato de ter tocado mais com outras pessoas também contribuiu. quando comecei a gravar, as ideias ficavam mais abertas, hoje em dia eu parto de algo mais concreto e fechado.
é curioso que muita coisa do "experimental" tem um tom meio niilista, no sentido de pessimista mesmo. já o teu som, ainda que tenha um contexto político pesado como o caso do zumm, envolve o transe pela repetição. não é uma coisa pessimista.
abdala - esse lance da repetição acho que vem muito do tipo de som que eu escuto desde sempre. moebius solo e no próprio kluster, silver apples, spectrum, sonic boom, oval, can, neu!, reich, etc. eu acho que entendo o que você diz por esse lance de niilista e talvez seja pelo fato de como as pessoas se relacionam com o som. o som pode ser libertador e esclarecedor pra uns ao mesmo tempo que ensurdecedor pra outros, no sentido de emudecer quem está fazendo.
e o projeto com o benke, o a.b? Vão lançar disco esse ano? como é a relação musical de vocês e como você o enxerga enquanto músico dentro e fora do boogarins?
abdala - eu e o benke começamos a estabelecer uma relação de amizade ano passado e através dessa relação nós começamos a falar de som até chegar ao ponto de tocarmos juntos. nós gravamos uma faixa esses dias e eu tenho organizado algumas composições novas pra mandar pra ele. se vai virar um disco eu não sei te falar, espero que sim. ele é um dos caras que eu mais tenho gostado de tocar
acredito em quem se entrega ao que faz. muitas vezes você vê algumas pessoas reclamando que as coisas "não acontecem" pra elas, mas você também não vê aquela entrega por parte delas. eu vejo o benke como alguém que se entrega ao que faz, que ama o que faz e o que vive. então, com certeza, o que ele fizer vai ser bom e vai resplandecer. pra mim ele é o melhor instrumentista da geração dele aqui na cidade e ele tem aproveitado muito bem as situações que tem aparecido na sua vida.