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entrevista: j.-p. caron I breviário

breviário, o disco-livro-objeto do músico e filósofo j.-p. caron entrelaça sons cotidianos, cruzamentos de ventania, trânsito, buzinas, passos, máquina de escrever e outros em cortes abruptos. o que rege essas habitações/passagens de silêncio, ruído, pausas, é um tom lírico e até confessional, especialmente quando se leva em conta as partituras-poemas incluídos no livro desenvolvido com sannanda acácia (incluído no download do álbum pelo bandcamp do selo estranhas ocupações) entrevistei caron por email há alguns meses. o texto foi publicado como uma mescla de resenha e entrevista no jornal do commercio. numa matéria sobre o estranhas e sua atuação no recife. agora a entrevista segue na íntegra, com algumas imagens do breviário, que em breve começa a ser vendido em sua versão física.

você tem uma relação muito próxima com a filosofia. como isso influencia a sua música, no geral, e o breviário, em particular?

caron - eu diria que as preocupações ligadas ao que chamamos "filosofia" em larga medida orientam o meu trabalho. retomo aqui o que falei a uma outra pessoa que me perguntou isso: sair da música e ir para a filosofia me livrou do peso da História e da obrigação de fazer Obra, com H e O maiúsculos, coisa que você sente quando está só no meio artístico, sobretudo no meio acadêmico, onde a maioria se mede pelo cânone, pelos "grandes" e pelas escolhas feitas por eles.

a mim basta fazer um som que reflita os conceitos e articulação que me interessam, não pretendo mais fazer grande obra de compositor. "peças" e "performances" viram lugares onde se articulam coisas que me interessam, sejam elas sonoras ou extra-sonoras, tirando o peso da preocupação exclusiva com a forma e elaboração do objeto unitário "obra de arte" das minhas costas. dito isso, não sei se existe "a filosofia".

como surgiu a ideia de lançar o disco juntamente com um livro?

caron - a maior influência do breviário foi o tumblr que tive por dois anos entre 2013 e 2015. ali, diferentemente de outras redes sociais, sem excluir algum grau de narcisismo, há maior anonimato nas postagens. há menos preocupação com a constituição de uma identidade do usuário. a relação dos usuários é mais com os materiais postados do que com outros usuários. isso se verifica de forma mais radical em plataformas como o 4chan. pensei num análogo "estético" daquilo, compactado em uma "obra", por falta de palavra melhor. reuni textos de diversas épocas, desenhos, fotos, coisas que parecem partituras, na tentativa de criar um continuum entre coisas disparatadas. as gravações de campo no disco também tinham funções originalmente bem diversas. algumas eram apenas registros pessoais sem intenção de um dia serem mostradas, outras eram realizações de algumas das peças que estão no livrinho, outras ainda possuíam relação oblíqua com alguma foto, gráfico ou partitura do mesmo, e assim sucessivamente. como se essa coleção de coisas e sua articulação fossem criando uma subjetividade fragmentária. referências diversas a acontecimentos de minha vida e de pessoas à minha volta convivem com elaborações mais formais e conceituais. a aparência de objets trouvés, e de articulação ao acaso é importante para este projeto. a função-autor ainda permanece, no entanto. em outros projetos começo a não mais assumir esta função. mas isto é ainda outro assunto. além disso o breviário, sua concepção como objeto, se deve à minha relação pessoal com a artista sanannda acácia, que conheci pouco antes de conceber esse trabalho. as capas são partes de telas texturizadas que ela havia pintado. vamos cortar fisicamente as telas e fazer as capas dos livros individualizadas. a ideia do livro também nasceu deste componente plástico e deste componente pessoal.

você é um dos responsáveis pela seminal records. por que decidiu lançar o disco pelo estranhas ocupações?

caron - lancei pelo estranhas ocupações porque o yuri [bruscky], que já era meu amigo, me encomendou um álbum. este álbum acabou se tornando o breviário. não penso na seminal prioritariamente como plataforma para lançar as minhas coisas, e sim como meio de lançar trabalhos que me interessem (e que interessem a outros membros). devo continuar produzindo trabalhos para outros selos.

eu queria entender melhor a coisa das partituras (na galeria abaixo). me parece que surge um certo engessamento nas partituras tradicionais, tanto que são criadas diversas outras formas de notações e, no breviário, você utiliza também a poesia. qual sua opinião sobre isso? e ainda: o breviário (livro, partituras) seria uma tentativa de ampliar ou abrir a percepção da música enquanto prática?

caron - eu uso o termo "partitura" de forma bastante ampla, para caracterizar também as bulas, ou instruções verbais que tem no livro. partitura neste sentido seria qualquer instrução destinada a gerar uma performance, sonora ou cinética. paradoxos são um dos meus interesses e você encontra também no livro partituras que não determinam nada. ou seja, a rigor, não são partituras. ou encontra poemas a serem usados-como partituras. ou seja, poesias que por alguma forma de détournement passam a orientar ações.

justamente quebrar a unidade da categoria partitura, e, pelo lado do som, quebrar a unidade da categoria "música" me interessava, procurando contemplar muitos casos específicos diferentes com ou sem relação entre si. portanto não tenho certeza se tenho a intenção de abrir a música enquanto prática, ou de sair da música. há um ponto de vista no qual estas duas posições são indiferentes. não conseguimos diferenciar precisamente uma da outra.

muitos artistas têm uma concepção niilista (no sentido de pessimismo; no future) acerca do "noise", usando o ruído às vezes para representar uma certa destruição, caos, desordem ou associado ao som urbano. acha que o ruído tem mesmo essa conotação negativa? como você concebe o ruído em seu trabalho?

caron - não estou preocupado com a expressão de nenhum afeto em particular, tais como caos, desordem, e outros que você citou. para mim afecções surgem dos materiais usados e da forma como são articulados. dentro desse processo você pode ter como critério a produção de um determinado afeto, ou você pode deixar que os afetos surjam a posteriori, que, em geral, é o meu jeito de trabalhar.

e não estou certo de que o ruído seja uma categoria tão central assim no breviário. silêncio talvez seja uma categoria tão importante quanto e a faixa final, de alguma forma, procura encenar a passagem de uma totalidade vibratória que chamamos ruído para uma outra totalidade vibratória a que chamamos silencio. e mostrar, talvez um pouco cageanamente, que este silencio não é muito silencioso, mas se comporta como ainda outra modalidade de ruído, caos ou ordem. no fim temos diferentes variantes de ruídos povoando o disco, mas que chamamos normalmente por nomes diversos: barulho, silêncio, som, música, palavra, imagem.

acho que o afeto predominante no disco, e, este sim, talvez tenha orientado a relação com os materiais, é o confessional, e o íntimo. o não-composto, ainda que minuciosamente composto pelo qual se dá a integração do não-idêntico. o niilismo, no entanto, me interessa. mas não necessariamente em conexão com o ruído.

caron - discordo de que o ruído impossibilite uma escuta polifônica. acho que "o ruído" pode ser visto de um lado como coisa unitária para a percepção, de outro como totalidade sensória, onde convivem muitas diferenças em seu interior, neste sentido podendo ser intrinsecamente polifônico. é uma questão de ponto de vista, da obra e daquele que escuta.

o rafael sarpa resumiu bem algo que está no trabalho: eu trouxe as "franjas" das coisas para dentro do disco. isso quer dizer que toda coisa no mundo está inserida em um contexto; é difícil determinar por vezes o limite entre a coisa e seu contexto. a estratégia de trazer todas as paisagens sonoras (ruidosas) onde estão inseridos os sons-figuras para o disco, o que ocasiona aqueles cortes abruptos entre faixas caracterizadas por contextos distintos, pode ser visto como uma abdicação da tentativa de "limpar" os sons, trazendo todas as impurezas dos entornos para dentro da moldura. e, neste sentido, me parece uma concepção, mais uma vez, bem polifônica das coisas. uma coisa não é só a coisa, mas suas franjas também, que desaparecem gradualmente num horizonte de ocorrências ao seu redor que não possui limite absoluto.

sadismo/masoquismo são resultados para mim e raramente orientações para a ação. são elementos típicos sim de algumas estéticas noise, mas que a mim não interessam tanto. o interesse pelo som alto vem pela busca de uma sensação de plenitude, que é, ela própria, inatingível. de tal forma que por vezes tem-se a impressão de que nunca será alto ou intenso o suficiente. isso sinto mais nos projetos –notyesus>, ii|iii e epilepsia [com henrique iwao] . breviário é íntimo. interessa, ao contrário, a aparência de desinteresse: não querer provocar nada em particular. talvez esse seja, se algum, o niilismo do disco. "vento sobre ruínas".

acredita que o silêncio e ruído são formas de potencializar ou expandir os horizontes da percepção, nos fazendo ouvir os ruídos e sons do ambiente que passam despercebidos pelo hábito/rotina?

caron - ruído pode muito facilmente tornar-se hábito também, e é o que vejo em grande parte da produção dita "de ruído". ruído não garante nada de especial ou de politica ou esteticamente "relevante". o interesse para mim não está no uso ou não de "ruído" no sentido normalmente alocado para essa palavra pelo noise. o mais importante é a disposição particular das coisas que pode ocasionar aberturas para ainda novas disposições naquele que ouve. e isso pode ocorrer com vários tipos de material, assim como vários tipos de material podem se tornar "ruído" ao se articularem de maneira menos habitual.

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