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esculpindo a voz: entrevista com maja s. k. ratkje


foto: jonas adolfsen

compositora e improvisadora, a norueguesa maja s. k. ratkje é notória pelas suas explorações vocais, tanto no quarteto de improvisação livre spunk ou em seus projetos solos, que incluem trabalhos com orquestra, instalações, música eletroacústica e eletrônica, teatro etc.

crepuscular hour, seu novo álbum, adensa sua pesquisa em uma peça grandiosa para três coros, três pares de "noise musicians" e um órgão de igreja. as vozes se fundem gradualmente em vórtices sonoros as demais camadas, lentamente conduzindo a um estado catártico. ao mesmo tempo, sublinha-se o ruído em sua qualidade "multidimensional" e "ao mesmo tempo luz e sombras", como ela mesma define.

o trabalho foi originalmente comissionado para o ultima festival, em 2010, em oslo, e dois anos depois foi adaptada para uma performance em huddersfield, inglaterra, com a ideia de ser uma instalação gigantesca de luz e som, resultando em um álbum e um dvd. nesta entrevista por email, ela fala sobre seu processo de criação.

você canta desde que era criança. como começou a explorar a voz para além do canto? quero dizer, pensar em vocalizações, "esculpir" o som e pensar a voz como um instrumento, explorando texturas, sobreposições....

eu tenho feito sons estranhos e engraçados com a minha voz desde que eu consigo lembrar, explorando através da imitação outras fontes sonoras que não apenas a voz apenas pela diversão, eu nunca havia considerado cantar. eu não pensava nisso até que comecei a estudar música e passei a usar minha voz na improvisação e desenvolver uma forma de trazer à tona e realmente explorar as possibilidades das cordas vocais e outros sons ligados à boca, como assobiar, 'estalar' ou outras filtragens da corrente de ar. eu geralmente digo que é a partir do início do quarteto SPUNK, em 1995, usando minha voz como o principal instrumento, que eu de fato passei a usar todas as possibilidades da voz.

minhas colegas no SPUNK são três mulheres tocando trompa [hild sofie tafjord], trompete [kristin andersen] e violoncelo [lene grenager] como seus principais instrumentos. então você não pensaria que esse som seria uma guia natural para explorar a voz. mas, na verdade, foi por tentar se encaixar, imitar ou contrastar suas contribuições sonoras que eu encontrei muito da minha própria técnica e uma plataforma estética para o meu canto. ainda estamos tocando com este quarteto, com os mesmos membros, e neste verão eu mixei nosso concerto de aniversário de 20 anos realizado no ano passado e que será lançado neste outono pela rune grammofon [teaser abaixo]

em voice concerto e várias outras peças você lida com harmonias espectrais. pode explicar o que é a "música espectral"? o que te atrai nela?

a chamada "escola espectral" desenvolvida em paris por compositores como [gérard] grisey e [tristan] murail foi criada nos anos 1970 como uma forma de construir novas harmonias baseadas nas próprias frequências reais do som ao invés dos doze tons da escala temperada e seus muitos compromissos. quando eu me refiro à escola espectral neste trabalho, quero dizer que eu construí as harmonias e acordes a partir de parciais harmônicas do som que eu analisei, o som de um saxofone tenor. mas também usei séries de tons parciais simples onde cada som harmônico está em relação fundamental em frações às frações, às parciais harmônicas.

além disso, eu uso um monte de outras coisas também, então eu não sou um purista ou representante de qualquer "escola", e também existem muitos compositores que pegam emprestado destas técnicas hoje. mas foi muito inspirador aprender sobre esta maneira de compor quando estava estudando, especialmente porque eu estava realmente à procura de outras maneiras de construir harmonias além da escala temperada, e esta forma espectral de pensar realmente me impressionou como essencial e algo com o qual eu poderia me relacionar. eu sempre senti que a música é tanto entre as notas das teclas brancas e pretas, quanto entre os sons produzidos de forma clássica com instrumentos e completamente outros sons. daí também vem a referência à "música concreta", onde eu quero destacar o interesse de som em si e não sua fonte.

você trabalha no campo da improvisação e da composição. acha as duas formas possuem relações ou são completamente diferentes?

eu acabei de escrever uma nota do programa do meu último álbum de música 'composta', and sing... (sai pelo 2l neste verão) onde afirmo que eu não improviso como uma performer ou componho como uma improvisadora. eu não desconsidero músicos ou compositores que fazem qualquer um destes dois, mas como eu sou igualmente envolvida com improvisação e composição, eu não consigo imaginar a vida sem o outro.

ao longo dos últimos vinte anos compondo, também é cada vez mais claro para mim o quanto essas duas maneiras de criar música afetam uma a outra. um método sendo principalmente "fora do tempo" e o outro sem a possibilidade de passar dias decidindo detalhes ou deixando novas voltas terem consequências em partes já feitas; ambos os métodos eu valorizo muito. diferentes métodos, mas ainda representando uma estética semelhante, afinal de contas, toda a música resultante ou a arte tem a mesma origem: eu.

crepuscular hour é inspirado pelos raios crepusculares, que parecem irradiar de um único ponto no céu e fluem por aberturas das nuvens. como esse fenômeno te influenciou e como ele se reflete na concepção da peça?

há muito tempo sou fascinada pelo fenômeno em que a luz quebra obstáculos e cria feixes no ar através das folhas das árvores, das nuvens etc. muitas vezes é no alvorecer ou no crepúsculo. e tem uma ligação mitológica na história e o aspecto religioso também é parte disso, claro, já que este fenômeno tem sido ligado à ascensão e retorno dos deuses – daí o termo folclórico ‘luz de jesus’. eu pensei que a luz crepuscular poderia ser apresentada como uma janela crepuscular do tempo em meu trabalho, que dura uma hora e em que a realidade está em questão. a peça é encenada com iluminação como uma parte essencial da experiência. usamos três coros e seis músicos de noise, além de um órgão de igreja que entra nos últimos 15 minutos da obra. o público pode se movimentar no centro da encenação – eles podem sentar-se no chão ou experimentar diferentes posições de escuta. as duas performances deste trabalho foram inacreditáveis. e o processo de transformar em um dvd foi muito educacional para mim. vale a pena encaixar esse tipo de peça em um novo formato? é sem sentido? eu convidei kathy hinde para fazer o visual baseado no live filming da performance no huddersfield contemporary music festival de 2012, e descobri que poderia funcionar como uma nova experiência, um documento em seus próprios termos, não apenas uma cópia sem vida do que foi a experiência do concerto. eu passei horas mixando tudo após a performance.

 

eu quero citar um trecho do texto que eu fiz para o encarte: ao trazer para baixo o equipamento de iluminação do alto teto para o chão do palco e remover o assento, o público foi colocado no centro da peça e encorajado a andar por aí para fazer a seu própria viagem crepuscular. a composição introduz gradualmente os artistas que estão nas varandas, no palco e ao nível do chão. a primeira seção foca sobre os artistas da frente, com a segunda longa seção começando com aqueles que estão tocando na parte de trás da sala. eventualmente, todo mundo está tocando simultaneamente no último quarto, o final catártico da hora crepuscular.

crepuscular hour soa meditativo e dramático. o órgão da catedral dá um ambiente muito singular a ele. você diria que há algum tom de liturgia?

​​o som do órgão definitivamente refere-se a algo cerimonial ou litúrgico, mas não deliberadamente. eu acho que o material textual é mais litúrgico já que propõe uma versão alternativa do cristianismo primitivo.todos os textos são da biblioteca de nag hammadi, uma coleção de treze livros antigos contendo mais de cinquenta textos que foi descoberta no alto egito em 1945.

esses textos têm proporcionado uma grande reavaliação da história cristã primitiva. eu escolhi fragmentos de texto que tocam a origem do mundo e dos seres humanos. a divindade feminina está no comando. por conta própria, ela cria uma régua para o mundo material que acaba por ser uma besta; ‘e seus olhos eram como fogos relâmpago’. então, sua divina prole sophia (sabedoria) cria um ser humano andrógino a partir de uma gota de luz”. em crepuscular hours, nós estamos na origem do mundo com textos que descrevem tanto caos e consolidação. na sequência, sophia chama as pessoas da terra de hoje, tentando ensinar-nos como a desigualdade ainda cria escuridão e guerra

o ruído aparece constantemente em diversos trabalhos seus. por sua vez, a música de ruído é muitas vezes vista numa relação próxima entre estética e política. você vê sua música num contexto político? claro que sim, e eu acho que a razão pela a música de ruído é vista com um caráter mais político é devido à sua tradicional função livre, fora e/ou em oposição às instituições e onde o poder e o dinheiro se encontram. Contudo, isto está a ponto de mudar pois muitos dos lugares onde o ruído (noise music) está já foram há anos envoltos pelo establishment. portanto, definir a música de ruído como política é talvez um pouco simples, mas isso é uma outra história.

de volta à questão principal, sobre a política na arte. eu acho que é essencial que os artistas contribuam para a sociedade com formas de abrir a mente das pessoas, que inspiram seu próprio pensamento e criatividade, que confrontam a injustiça e fazem perguntas desconfortáveis. a nossa sociedade entrou em uma paragem que é difícil de sair, de forma que o capitalismo é governado ameaçando a nossa própria existência, para não mencionar a vida que coexiste neste planeta. nós já extinguimos metade dos animais selvagens desde que nasci, e estamos firmes no curso de uma mudança climática massiva provocada pelos humanos e com todos as suas consequências.

por isso, mais do que qualquer coisa nós precisamos de estratégias para mudar e se abrir para novas maneiras de pensar. muito já está sendo feito politica e tecnologicamente, mas acho que as artes podem contribuir para o despertar das pessoas, que é extremamente necessário para fazer mudanças reais. dito tudo isso, eu não posso dizer que a maioria da minha arte é política de uma forma que dá explicitamente uma mensagem, mas existem vários trabalhos que são mais "confrontacionais". mas também acredito em usar a nossa posição. como um artista, você às vezes é ouvida por muita de gente, e se você tem algum reconhecimento em seu campo você está susceptível a ser publicado se você tomar parte no debate público. eu desafio mais artistas a fazê-lo, e não só se envolver quando os debates políticos são preocupantes política arte principalmente sobre (falta de) dinheiro para as artes.

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