poesia sonora, instalação, radioarte e paisagens sonoras: entrevista com renata roman
foto: rodrigo sommer
a artista sonora paulistana renata roman atua em diversas áreas. interessada em paisagens sonoras e gravações de campo, ela é a criadora do sp soundmap, mapa sonoro interativo da cidade de são paulo. ainda produz programas de radioarte que fundem poesia contemporânea e paisagens sonoras. os trabalhos são permeados relação de memória afetiva e pertencimento -- o sp soundmap, por exemplo, nos pergunta "como é o som da sua rua, de seu bairro, de seu local de trabalho, dos lugares que você frequenta? o que te encanta? o que te desencanta?". estas questões se intensificam nas instalações 404 not found e a memória da casa.
apresentada em 2014 no ibrasotope (são paulo) e no salão xumucuís de arte digital (belém), 404 not found coloca o ouvinte sentado numa cadeira sob uma luz pendente, sugerindo uma sala de interrogatório. pelo fone, ouve-se uma peça sonora interminável com o nome dos cerca de 400 desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira. a memória da casa é a ocupação de uma casa vazia com paisagens sonoras representativas da memória de uma casa habitada. o visitante percorre o espaço e ouve narrativas que indicam a vida transcorrendo como outrora. como ela mesma aponta: "quando a memória não ocupa espaço mas manisfesta-se nele".
em outubro, renata lançou pela seminal o álbum oye com gravações binaurais realizadas em havana, cuba. por email, ela falou mais sobre a sua obra.
você tem muitos trabalhos de rádio arte, que é um formato de pouca evidência, pelo menos no brasil. como surgiu seu interesse em trabalhar com isso e o que te atrai nele hoje?
o meu interesse pela linguagem radiofônica existe há muitos anos. na década de 90 eu participei da rádio livre xi de agosto e pude desenvolver dois projetos: o programa linguagens, onde eu misturava poesia, literatura, música e algumas vezes entrevistas e o núcleo de dramaturgia radiofônica, onde dirigi e produzi quatro peças radiofônicas. em 2012 eu retomei esse trabalho quando fui convidada pela mobile radio a produzir um programa para compor sua grade, na 30ª bienal de artes de são paulo. eu iniciei o projeto paisagens e poéticas, que já tem vinte edições e mescla paisagem sonora e posia. na sequência, knut aufermann convidou-me para produzir uma peça de radioarte para a rede radia. é, de certa forma,um resgate do programa linguagens. eu sou leitora de poesia e às vezes 'cometo' poemas e estava iniciando meu projeto de cartografia sonora. ou seja, juntei meus afetos. fui me enredando cada vez mais. o meu interesse é exatamente essa possibilidade de experimentar.
no seu soundcloud há duas faixas que ligadas à povos indigenas: native, uma peça com gravações de campo de uma aldeia guarani, e uma manifestação dos tupinambás pelo direito à terra. como foi a realização desses trabalhos, o processo e a história por trás gravações?
a situação dos povos indígenas no brasil é lamentável. é uma questão que me toca profundamente. sempre que possível eu insiro gravações e referências aos povos originários do brasil. native foi a peça que criei para a rede radia, um projeto de abrangência internacional, então aproveitei para dar alguma visibilidade para essa questão. o meu contato com a comunidade guarani foi menor do que eu desejava, lamentavelmente. eu consegui visitar uma aldeia em paraty, mas só conversei com um jovem indígena e duas mulheres. chovia muito, eu pretendia voltar outro dia. mas eu gostei tanto dos depoimentos do jovem guarani que considerei ter o que precisava, já que a intenção não era fazer um documentário. a gravação dos tupinambás é um registro, uma gravação de campo realizada em uma das manifestações que aconteceram em são paulo. sempre que possível estou presente, e sempre que estou presente, registro.
em native, quase no fim da peça, uma índia fala:
"[as canções] é tudo sagrado, porque não é a gente, não é pessoa que fez a canção. deus [nhanderu] que mostrou pra gente aí a gente canta. então quando as pessoas mais velhas sonham com canção, aí eles cantam pra gente pra gente saber".
eu queria que você comentasse um pouco sobre esse contato com o outro, esse choque com a diferença. o que te chamou atenção nesse tempo em que você fez as gravações?
essa fala é do jovem guarani. foi uma conversa muito informal, eu queria dialogar com a sua sensibilidade e através dela entender um pouco de sua cultura. foi um encontro muito suave, como se pode perceber em nossas vozes. o jovem tinha olhos tão tão brilhantes, que pareciam dois sóis. e a chuva caia sem parar. o único choque que tive foi perceber um jovem e uma criança jogando videogame e escutando musica eletrônica, numa casinha de um cômodo, muito pobre. eu tentei conversar com eles mas não se interessaram em trocar nada comigo. foi uma desconstrução. o choque foi no encontro com a similaridade não com a diferença, né?
e a ideia para as instalações 404 not found e a memória da casa? algum evento específico te marcou na construção delas?
a instalação 404 not found partiu da angústia gerada pelo desaparecimento do amarildo, no rio de janeiro. a questão da tortura ainda ser uma prática herdada da ditadura é inconcebível pra mim. eu comecei a ler muitas coisas relacionadas e o trabalho surgiu muito rapidamente. eu queria construir uma peça com nomes de desaparecidos políticos e descobri que oficialmente são cerca de 400! a peça sonora é escutada pelo público numa cadeira sob uma luminária que sugerem uma sala de interrogatório. foi a minha maneira de sublimar o mal estar que me provoca isso.
404 not found
a memora da casa surge de outra maneira. foi a partir de reflexões acerca da memória do som e/ou a relação do som com a memória, o som como disparador. fui pensando nele até que apareceu uma casa vazia para poder experimentá-lo. depois foi para a casa de tijolo e para a galeria intermitente em mar del plata.
como foi o trabalho de criação dos sons da memória da casa? você tinha em mente alguma casa específica? digo, ao mesmo tempo em que é uma situação muito material, o ambiente de um casa também é muito particular e íntimo e varia de caso em caso, assim como os seus sons. esse processo não se conclui. é um projeto que vai se modificando a cada ocupação, por essas subjetivas diferenças. as peças sonoras são compostas com sons arquetípicos de uma casa habitada. eu não tinha em mente nenhuma casa específica. embora os sons de minha casa estejam presentes, são os que podemos encontrar nessa casa de todos, que transcende as especifidades arquitetônicas. a diferença está em cada um que entra na instalação e tem suas memórias acionadas pelo som.
fico imaginando a reação das pessoas entrando em contato com o 404 not found e o memória da casa. você conseguiu acompanhar isso? que tipo de respostas recebeu?
a memória da casa provoca mais, curiosamente. acho que é justamente por evocar experiências muito intimas. eu me lembro de uma mulher, na casa de tijolo, que após entrar no quarto, teve que sair. ela me disse que tinha se lembrado de sua infância e que não tinha sido bom. em mar del plata, uma pessoa relatou medo de ficar na casa sozinha. a instalação é realizada em casas totalmente vazias, nenhum móvel, nenhum sinal de que esteja habitada, então gera um ambiente que pode ser fantasmagórico, também. por outro lado, tive respostas muito singulares e que provocam reações e experiências opostas a essas e compõem a maioria delas. já a 404 not found provoca angústia e essa resposta é óbvia e esperada. o público se coloca na condição do interrogado para escutar a peça que tem uma estrutura muito simples mas com peso sonoro.
ainda nos anos 1960, murray schaefer começou um projeto de catalogação de sons de diferentes lugares do mundo, como um mapa sonoro. o objetivo dele era de algum modo preservar aqueles sons. já o sp soundmap me parece ter uma proposta diferente, ligada principalmente às discussões sobre a ocupação do espaço urbano. esse era um interesse quando pensou o trabalho?
quando eu pensei no mapa sonoro de são paulo eu desejava em primeiro lugar, aproximar as pessoas da experiência de escuta do entorno sonoro. isso foi em 2012 e não via muita gente aqui em são paulo ou brasil falando disso, ou trabalhando com gravações de campo. na época eu só conhecia o trabalho de thelmo cristovam, que faz impecáveis e lindos registros. não tinha outra pretensão. depois, ao longo do tempo, elas se ampliaram. hoje o mapa passa por uma mudança na plataforma*, com orientação do pesquisador rui chaves. *n.e.: a plataforma passa por reforma, mas as gravações ainda estão disponíveis no soundcloud de renata
conta mais como foi esse disco. como surgiu? você foi a cuba por uma viagem pessoal mesmo ou foi algum projeto, uma residência?
eu fui fazer uma residência artística em cuba, no isa (instituto superior de artes) e o meu projeto previa derivas por havana para gravações de campo. então eu já pensava que o álbum poderia nascer desse processo. e nasceu. eu tinha, quando voltei ao Brasil, 10 horas de gravações. a escolha não foi fácil nem rápida, mas acho que acertei. gosto muito do resultado e sou muito grata ao paulo dantas, para quem confiei a masterização e finalização do projeto e com quem eu conversei muito nesse processo. antes de viajar você já tinha a ideia de fazer esse disco? o que te chamou atenção por lá que você quis trazer pro disco?
eu tinha sido convidada pela seminal records para fazer um álbum com gravações de campo da cidade de são paulo. eu fui pensando na possibilidade de substituição de um material que já tinha apresentado para o selo mas que não me satisfazia totalmente. eu desisti do primeiro material. queria algo diferente, que apresentasse um universo sonoro distinto do que estamos ou estou habituada. havana foi incrível. a cidade tem uma musicalidade impressionante.
fiquei pensando em você circulando na aldeia guarani e pelas ruas de havana gravando tudo. Imagino que a reação das pessoas em volta é de estranhamento e curiosidade pelo impacto do gravador ali no local. quando você "vai a campo", pensa numa forma de deixar sua presença, digamos, mais "neutra"? tornar-se natural como um habitante, e não alguém de fora que está ali fazendo um trabalho.
eu tenho preferido as gravações binaurais e elas me dão essa 'invisibilidade'. Antes disso aconteciam algumas interrupções, pessoas perguntavam o que eu estava fazendo, se era um celular ‘peludo’, para que isso hahaha. tenho umas gravações engraçadas dessas abordagens. com o binaural eu fico à vontade, ninguém percebe. no entanto a questão da invisibilidade é pensada por mim como uma maneira de não intervir no ambiente sonoro, sempre busco essa neutralidade relativa. eu digo relativa porque o meu posicionamento, os movimentos de meu corpo são de alguma maneira uma intervenção.
você é co-produtora da série de concertos dissonantes e também envolvida direta ou indiretamente no ciclo de música experimental e no fime (festival internacional de música experimental). são três eventos diferentes e com regularidade só em são paulo. acha que a música experimental no brasil está mais ativa hoje? dá pra traçar esse paralelo?
sim, eu acho que está mais ativa. há projetos em belo horizonte, recife, joão pessoa, salvador. o interesse está aumentando. enquanto vemos nestes projetos de menor dimensão um público mais composto por artistas, músicos e compositores da cena experimental, no fime podemos ver que o interesse não é tão restrito quanto parece. o dissonantes é um caso à parte. é um ciclo que tem por objetivo a visibilidade da produção de mulheres e tem atraído público variado e presença maior de mulheres também na platéia. a cena experimental em são paulo, a meu ver, já tem outra cara depois do dissonantes. vê-se mais mulheres tocando. a cena está ficando mais diversa e diversidade é bom!