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poéticas da voz, metarmorfoses do canto: máquinas de sentidos


roy hart e alfred wolfsohn: pesquisas sobre uma "unchained voice"

originalmente publicado na revista continente, edição #190; aqui em versão ampliada em uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade, o historiador jairo severiano aponta que a canção brasileira teve origem ainda no período colonial e foi se desenvolvendo gradualmente até que, no fim do século xviii, concretizou-se sob a forma de modinha. após a chegada da música gravada e a propagação dos meios de comunicação em massa, a canção, em seus diferentes formatos, foi tomando um espaço hegemônico da música popular. e a voz exerce um papel fundamental nesta hegemonia.

"a produção passa a privilegiar a canção, gênero em que se pode criar uma identificação narrativa entre produtor e ouvinte, em que, como no romance, cada canção pode ser sobre você mesmo. se a música instrumental é um tema em aberto para qualquer vida, a canção é um mundo que nos apropriamos como se fosse nosso", escreve fred coelho no artigo a voz na canção popular - apontamentos e hipóteses. dois fatos históricos citados por fred dão a dimensão da centralidade da voz na música popular. em 1927, já eram contados mais discos gravados com canções do que instrumentais. em 1950, rádio nacional tinha como contratados fixos 160 instrumentistas, 90 cantores e 15 maestros – conforme registrado por ruy castro em chega de saudade.

impulsionada pela era de ouro do rádio (quando, devido ao sistema de captação de áudio em dois canais, o cantor destacava-se pela sua potência vocal, o famoso "dó de peito"), a voz foi alçada a um patamar icônico, demarcando espaços culturais, estéticos, políticos. pensemos na imponência majestosa de nomes como carmen miranda, dalva de oliveira, elizeth cardozo, ângela maria e, posteriormente, elis regina, maria bethânia. ou em seus contrapontos: o grão da voz na fragilidade de nara leão, no sussuro intimista de joão gilberto. as suas suas posturas desdobradas em um campo imagético de capas de discos, fotografias, cenários, figurinos a construir um imaginário coletivo que, por sua vez, sublinha normas, práticas e ideologias – o que é uma cantora, o que é uma boa voz, um bom canto, entrelaçado, sempre, por disputas políticas de gênero. em um depoimento sobre o compositor piauiense torquato neto (gravado por caetano veloso, gilberto gil, maria bethânia, jards macalé, entre outros), tom zé propõe: "não cantar apagava a visibilidade de torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem".

dark voices, anotações de noah pikes

ao mesmo tempo em que este modelo do cantor-imagem e da voz-imagem predomina (do rock ao pop, do sertanejo a ópera), a música contemporânea engendra linhas de fugas. em 1935, o alemão alfred wolfsohn em seu um centro de pesquisa já desenvolvia técnicas vocais expandidas ("the unchained voice"), posteriormente incorporadas à peças de performance, música, dança e teatro de vanguarda – caso do ator sul-africano roy hart na ópera eight songs for a mad king e o diretor polonês jerzy grotowski em arkropolis. wolfsohn escreve: "when I speak of singing I do not see it as an artistic exercise, but as a possibility and a means of recognizing oneself, and of transforming this recognition into conscious life".

com a emergência de dispositivos eletrônicos, artistas pensam também em novas possibilidades na manipulação da voz, explorando uma escuta nômade, desterritorializada e construções que exploram os limites e a ambiguidade da fonética, da acústica, da língua (idioma), da fisiologia. karlheinz stockhausen compõe stimmung (1968), "a primeira grande composição ocidental a ser inteiramente baseado na produção de harmônicos vocais", com as vozes em apenas um acorde. sentados em círculo, os cantores (dois sopranos, dois tenores, um contralto e um baixo) têm suas vozes amplificadas por microfones e alto-falantes. em 29 das 51 sessões, cada intérprete é responsável pela emissão de onze nomes, somando, no total, 66 nomes diferentes de deuses e deusas de diferentes culturas (asteca, aborígene, grega) e também são recitados poemas eróticos escrito pelo próprio stockhausen.

o compositor francês christian cloizier, cofundandor do grupo de pesquisas musicais de bourges, em 1970 indicava: a voz não é mais palavra ou canto; é tudo que sai da boca tudo que é fraco demais para sair e que se pode tomar por microfones de contato, é a voz natural no espaço acústico, a voz sonorizada, a voz registrada, manipulada. essas vozes, essas cores constituem nosso meio-ambiente sonoro permanente, tomam corpo com a nossa cultura. não existe mais uma voz, mas vozes". na década seguinte, a compositora paranaense jocy de oliveira explora a voz em dois trabalhos específicos: no álbum estórias para voz, instrumentos acústicos e eletrônicos (1981) e, mais enfaticamente, na peça ouço vozes que se perdem nas veredas que encontrei (1981), para voz feminina e delay.

nesse contexto, uma série de trabalhos brasileiros recentes expandindo a concepção e a utilização da voz, deslocando-a de seu posto figurativo do (bel) canto. a musicóloga, performer e compositora gaúcha isabel nogueira lançou dois trabalhos este ano: voicing, disco solo, e lusque fusque, com o coletivo medula. as obras propõem a imersão em uma “voz-som, voz-sentido, voz-ruído”, uma confluência de vozes que se transformam em meio à bits e ondas eletromagnéticas em um espaço-tempo estendido.

“através de colagens, prolongamentos, sobreposições, uso de loops, uso de recursos onde a semanticidade da palavra deixa de ser seu sentido primordial, pretende-se criar camadas de sentido onde deixa de ser perceptível uma unicidade da voz e suas associações com gêneros ou contextos sociais”, detalha isabel.

integrante do medula e colaborador de diferentes trabalhos de isabel nogueira, luciano zanatta explica que lusque fusque trabalha com e no limiar da canção para, no fim, reinventá-la. “o disco parte de ter a voz, de ter alguma linha estrutural, mas que dialoga com ruído e com quebra de arranjo. é pegar vários paradigmas da canção – seja predominância da voz, inteligibilidade do texto, organicidade do arranjo, padrão de afinação, padrão de harmonia – e inserir um contexto musical que mostre, por exemplo, que aquela ideia de afinação, os doze tons, a escala temperada e etc. – não é tão rígida. a gente usa um outro modelo. a gente foi pensando em pegar os limites dos conceitos e fazer com que a matéria musical fizesse o limite se contradizer. tiramos tudo aquilo que parecia caracterizar uma canção, mas aquilo segue sendo uma canção”, reflete.

os últimos trabalhos de lílian campesato, musicista e pesquisadora ligada ao núcleo de sonologia da universidade de são paulo (usp), também apresentam uma exploração importante da voz. em o estranho – apresentada ano passado, no festival internacional de música experimental (fime) em duo com fernando iazzetta tocando eletrônicos –, a voz do dramaturgo e diretor teatral antonin artaud é que deflagra o espaço contraditório entre o significado das palavras e a forma como são ditas na tentativa de produzir “o espaço do outro, do louco”.

mais impactante ainda é o solo vocal fedra – apresentado no encontro nacional dos compositores universitários, em novembro de 2014, e no ano seguinte no fime. o mote é a agonia suicida da figura de mesmo nome da mitologia grega. a peça “recria por meio de sons fisiológicos, sons da respiração, sons guturais, um espaço íntimo que é compartilhado com os ouvintes como algo familiar. neste caso, o ruído não reside apenas nas qualidades acústicas da voz, mas naquilo a que ela remete”, descreve lílian. seguindo o seu próprio conceito de ruído (além de performer, ela é pesquisadora reconhecida na área de música experimental e arte sonora), persiste ao lidar com os extremos da dor, do corpo, dos equipamentos, da própria noção de arte.

“era simplesmente tentar buscar esses sons internos, minha história, no meu corpo. quase uma psicanálise reversa. o que está por trás desses sons todos, dessas angústias? é um pouco o que eu vou tentar fazer com fedra”, contou lílian em entrevista a tânia mello neiva e thiago cabral no artigo o lamento de Fedra ou o lamento de lilian campesato na imagem de fedra.

"tem uma coisa na história de fedra que me interessa muito e que está presente na ambiguidade que tem na produção desses sons. por exemplo, tem uma coisa de um sexismo que a história de fedra traz, que eu como mulher coloquei a minha emissão vocal ali pensando muito nesses lugares da voz feminina. muito ver com momento de tensão, de medo. tem momentos que é um gozo, tem momentos que é afirmação de mim mesma, tem momentos que é uma angústia muito grande de um lugar que é muito presente no universo feminino, momentos em que a minha voz está nesse lugar da angústia por uma inferioridade que depois passa para a extroversão absoluta da voz”, afirma lílian.

a paulista juçara marçal é outra criadora importante neste quadro, e certamente o nome mais popular. passando pelo grupo vocal vésper, a banda semiacústica a barca e os experimentos na forma-canção afro-brasileira no metá metá, juçara mergulhou radicalmente em experimentações com pedais e improvisação a partir da voz – particularmente notáveis nos álbuns abismu (com kiko dinucci na guitarra e thomas harres na bateria) e anganga (com o produtor carioca cadu tenório). ela intensificou essas ideias com o projeto nós da voz, onde se apresentou semanalmente em sessões de improvisação com um grupo de artistas diversos – incluindo a cantora ava rocha, o rabequeiro e saxofonista thomas rohrer, o baterista sergio machado, os já citados kiko dinucci e cadu tenório, entre outros.

"esse processo de tornar-se envolto na sonoridade do barulho vem com o metá metá”, contou juçara em entrevista sobre o anganga, ano passado. “você descobre outras maneiras de usar a voz, ou mesmo o berro. acho que é até um caminho natural usar o grito a partir dessa ideia de tela vazia para criar sons com sua voz, e não apenas interpretar uma canção".

na música de flora holderbaum, a voz e a fala estão em deriva. uma máquina de significações. de sua bio do soundcloud: "exploro a intersecção da poesia com o som: a voz, a fala, o violino, sons do cotidiano e eletronicamente manipulados. Eu também contorno o gesto da voz como máquina de sonoridades e assim, poética enunciação cheia de camadas: as vozes do significado, do som, do estado interno, do ato de fala, da cena". em vicejo e livro do espaço ou cd enter, como nos procedimentos da poesia concreta, a palavra se desdobra em outras, muitas vezes irrompendo de surpresa. em, 5 peças para vocalidades mínimas ou microvocalidades, (quase) ao contrário, são fragmentos, estilhaços, unidades mínimas.

sem ignorar suas devidas particularidades, a questão pensar esses trabalhos como um diálogo dentro de uma perspectiva histórica é uma produção constante do múltiplo. outros regimes de significação, as possibilidades das narrativas vertiginosas e não-lineares. é ainda, como reforça isabel nogueira, “uma atitude política. questionar os papeis e modificar a música, um lugar, as pessoas de forma que esse questionamento possa ir para outras coisas – como é o ingresso na universidade? quem está nos cursos de música? que música é perpetuada?”. aquilo que está além do canto. produzir e escutar não a voz, mas as muitas vozes.

em recife, yuri bruscky (do selo estranhas ocupações) e caio lima (vocalista da banda rua) organizam o boca maldita: festival de poéticas da voz, dia 11 de novembro, voltado para esse tipo específico de experimentações com voz. em suas palavras, o festival "reverbera trabalhos cujas poéticas tenham a voz como elemento articulador central, seja em composições utilizando técnicas vocais estendidas, no processamento eletroacústico para manipulação e espacialização do material sonoro, nas experiências que exploram a ambiguidade da linguagem oral e o potencial estético de expressões fonéticas, ruídos, articulações fisiológicas e da integração da voz com as particularidades acústicas do ambiente."

além de uma sessão de improviso entre os próprios yuri e caio ("minha voz entrando pelo sintetizador modular, algumas paisagens sonoras e minha voz numa linha auxiliar também", resumiu caio), a programação do boca maldita também tem túlio falcão (hrönir) com seu novo projeto, que envolve processamento com voz, pure data e guitarra, e marcelo campello apresentando a peça kraneion. escrita para coletivos abertos, kraneion vai ser tocada em sua versão grammelot - uma linguagem lúdica inventada pelos cômicos dell’arte dos séculos XV e XVI que põe em sequência sons aparentemente sem sentido, onomatopeicos ou macarrônicos.

 

na música pop

desde os trabalhos do kraftwerk nos anos 1970 e as produções de giorgio moroder na era da disco music, nos anos 1980, a música pop também tem assimilado algumas explorações sonoras da voz. nos anos 2000, a cantora islandesa björk criou um mundo de sons novos até mesmo para ela. concebido durante um ano e meio com o engenheiro de som valgeir sigurdsson, medúlla (2004) utiliza a voz como única fonte sonora - exceto por um gongo, piano e efeitos eletrônicos pontuais. grunhidos, respirações e acrobacias vocais surgem em diversas faixas, como em ancestors, onde ela utiliza a técnica dos esquimós inuítes de canto polifônico com a gargante (throat singing).

na atualidade, kanye west vem sendo uma peça chave na concepção da voz como um instrumento por si só, para além do canto (conforme detalha o vídeo abaixo). ele mostrava ideias ousadas já em seu primeiro disco, colleage dropout (2005). jesus walks, o single principal do álbum, era sustentado por um sample da música walk with me, do the arc choir, com os vocais criando a melodia, o ritmo e a linha de baixo. em 808’s & heartbrakes, kanye, pouco notável pela sua habilidade de cantar, na verdade canta em todas as faixas do disco. ele o faz com o uso do auto-tune, um software de áudio que utiliza de uma matriz sonora para corrigir os tons. porém, ao invés de usá-lo como um “corretivo”, kanye faz do auto-tune um recurso expressivo, assim como um pedal de distorção serve para uma guitarra. em faixas como say you will e heartless, a voz dele fica num entrelugar do orgânico e do robótico. em runaway, do seu aclamado my beautiful twisted dark fantasy, ele usa um vocoder de modo a fazer com que sua voz soe como uma guitarra distorcida – mas ainda assim reconhecível.

o californiano frank ocean levou às experimentações de kanye a um novo patamar em blond(e), seu segundo álbum, lançado no fim de agosto. em parceria com um vasto time de produtores (incluindo arca, james blake etc), ocean processa sua voz com auto-tune e alterações de pitch, assim como o rapper. mas os arranjos atmosféricos e texturais, repletos de espaços vazios e reverberações fornecem um ambiente de dubiedade à voz, que soa fluida e deslizante – como no single nikes e futura free, que encerra o disco de forma dramática.

trata-se não mais do grão da voz, como dizia roland barthes, indicando o “corpo na voz, o toque”. a digitalização do processo de produção nos leva a pensar naquilo que o pesquisador pernambucano thiago soares chama de “píxel da voz”, que rompe com as premissas de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”, uma vez que a constituição de uma voz “natural” é possível de ser criada também nos softwares. a voz passa a ser a metamorfose do corpo que canta.

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