um samba de atormentar: entrevista com douglas germano
foto: rafaela netto
“meu samba não é de lamento, é muito mais de atormentar”, declara o paulistano douglas germano na letra de golpe de vista, faixa que dá título e abre o seu segundo álbum - sucessor de orí (2011) e duo moviola (2009), com kiko dinucci. enquanto alguns puristas se dedicam à “preservar” o samba conservando-o em formol, outros artistas partem das tradições para reconfigurar o ritmo e criar novos caminhos. apesar de menos conhecido como intérprete, germano é um nome chave deste atual movimento exploratório em torno do samba e da canção popular brasileira – ele é autor de maria da vila matilde (gravada por elza soares em mulher do fim do mundo) e co-autor de damião (juçara marçal), oyá (metá metá), além de vida alheia, sucesso com o fundo de quintal em 1991.
formado na bateria da escola de samba nenê da vila matilde, douglas germano vem do samba, mas o vive e interpreta sem dogmatismos e olhando sempre para o presente. analisando o contexto cultural de 1976, quando lançou estudando o samba, tom zé apontou que “o samba, uma forma viva, estava aprisionada por seus próprios cultores”. em entrevista por telefone, germano concorda: “eu nem sabia que ele tinha dito isso, mas eu assino embaixo! eu acho que o sambista dá um tiro no pé diariamente, principalmente engessando o ritmo. ‘ah, você só pode tocar samba se você tiver tal e tal instrumento’. aí começa aquela fetichização. você tem que ter o instrumento x, y, z e se não for assim não é samba. mentira!”.
“o samba é um gênero fabuloso. acho que ele permite muitas coisas do ponto de vista do tema, da atualidade. no começo do século passado, o samba tinha o papel que o rap assumiu hoje de representação mais eficaz de camadas determinadas da população – que hoje o samba passa longe. e essa moçada (sambistas) não percebe. essa moçada não percebe que o samba pode ser um porta-voz do próprio tempo, sempre”, critica germano. “ao mesmo tempo em que eles cultuam pra caramba o noel rosa, se esquecem que o noel, no período dele, revolucionou absolutamente. rompeu com tudo e fez à maneira dele! e o sambista fica aí botando um chapéu panamá, um sapato bicolor, que é coisa da década de 30 do século passado, e reclama se você quiser fazer uma coisa tratando o hoje. aqui em são paulo, o morro mais evidente hoje é a avenida paulista”.
é deste contexto que golpe de vista emerge. um disco nervoso, envenenado e, principalmente, urgente. sua sonoridade é calcada no violão sincopado e no ritmo frenético da caixa de fósforos. ainda aparecem alguns complementos pontuais de cavaquinho e surdo (tocados pelo próprio douglas) e colaborações da flauta e do sax de joão poleto e do trombone de pedro moreira. “eu queria registrar minha forma de tocar as músicas e de interpretar também. mostrar o quanto o violão é importante nas coisas que eu faço. é a forma mais crua e mais honesta que eu teria para registrar”, explica.
sobre o conceito do álbum, ele detalha: “golpe de vista, pra sintetizar, é o seguinte: se defender com as armas que se tem a mão. o que eu tenho à mão? se você vier aqui em casa e pedir pra tocar you s/a, eu vou tocar do jeito que está ali no disco. o que eu tenho à mão é meu violão e a minha caixinha de fósforo – eu sou fumante e tenho preferência pelo fósforo ao invés de isqueiro exatamente pela possibilidade de batucar. eu lembro que quando falava que ia soltar um disco só de violão e caixa de fósforo, a pessoa imediatamente remetia à memória de ciro monteiro, elton medeiros, aquela coisa quase samba-canção ou samba sincopado. não é nada disso, os andamentos são todos ligeiros e é violão e caixa de fósforo mesmo assim”.
e de fato não é. o álbum tem uma riqueza timbrística muito singular. com dinâmica acelerada, as canções tratam da vida e situações da vida urbana. na narrativa rica e detalhada de zeirô, zeirô (cuja letra levou 45 dias para ser finalizada), germano conta o evangelho em uma pelada de várzea – uma rara música sobre futebol com desfecho trágico.
“eu acho que do futebol, assim como do mundo dos orixás, você consegue tirar metáforas maravilhosas e que são inteligíveis pra qualquer um”, diz germano sobre dois temas recorrentes de suas letras. “no caso de zeirô, zeirô eu recebi uma encomenda. ivan silva, um amigo fotógrafo, fez um trabalho sobre a periferia de são paulo. a ideia dele era, na conclusão, fazer um show musical onde essas imagens seriam apresentadas como cenário. ele me convidou pra compor uma música para uma foto específica e eu vi esse garoto, no canto da foto, meio dando uma ordem. fiquei pensando: por que ele usaria a camisa 33? aí eu o associei a jesus, coloquei os discípulos no time e por uma falha ele acaba pagando o preço por aquela derrota – que na verdade nem é uma derrota, é um empate”, conta.
em iso 9000 e you s/a lançam visão crítica do culto moderno do trabalho. esta última é uma parceria com o economista everaldo f. silva, com quem escreveu damião, e uma das mais contundentes faixas do álbum, onde, amparado por um coro feminino, canta com dramaticidade: “avidez/ reverência no auditório após/ aclamarem o bem do freguês/ renegando-te ao algoz”.
“são paulo é uma cidade de serviços. aqui foi um campo fértil pra essa turma do gerenciamento empresarial atuar com seus métodos e fórmulas, cursos e palestras”, diz. “tem duas músicas no disco que tratam disso. uma é iso 9000, que é um pouco mais bem-humorada, mas trata da mesma situação, e a outra é you s/a. a maior circulação daquela revista você s/a é em são paulo. aqui as pessoas abdicam mesmo da vida particular em troca dessa vida empresarial e quase de pessoa jurídica. cnpj ao invés de cpf. e muitos malandrões ficam no rádio, em palestras e etc dizendo como é que você tem que se comportar dentro de uma empresa (e entenda isso como subserviência). são questões, mecanismos que são apresentados com uma cereja do bolo, com um enfeite maravilhoso mas que no final só fazem o funcionário trabalhar o dobro, sem reclamar muito porque esse é o caminho para o sucesso é esse”, critica.
a maria da vila matilde no grammy
gravada em mulher do fim do mundo (2015), álbum que promoveu (mais um) renascimento artístico de elza soares, maria da vila matilde tornou-se um símbolo da vida e obra da icônica cantora carioca. mas a música (incluída em golpe de vista) também se cruza com a própria história de douglas germano, seu compositor. a inspiração da letra foi sua mãe, vítima de violência doméstica, e as baianas da escola de samba nenê da vila matilde, o primeiro exemplo de poder feminino com quem tomou contato.
“minha mãe era espancada em casa violentamente. isso aí destruiu praticamente a minha família”, relata germano, na época com 12 anos, era o mais velho de três irmãos. ele diz que escreveu a música surgiu como que “para se livrar de uma história antiga”.
“nessa época que as coisas aconteciam lá em casa, tinha um programa na tv globo chamado tv mulher. esse programa era apresentado pela marília gabriela e um dia ela tava recebendo a elza soares, que apontava os problemas que as mulheres sofrem com violência doméstica. isso lá em 1982, 1981. e eu lá, com a minha cabecinha de garoto, passei a entender que aquilo tava errado. a minha mãe proibia a gente de falar as coisas. por conta de hematomas, ela passava duas semanas sem sair de casa. e ouvindo aquele papo eu percebi que aquilo estava errado. falei com a minha avó e as coisas começaram a se transformar porque até então a minha família não sabia”, conta.
a interpretação de elza para maria da vila matilde foi indicada este ano ao grammy latino na categoria melhor canção de língua portuguesa – ainda que germano não tenha recebido nenhuma notificação zdireta do grammy. a música se popularizou como nenhuma outra já feita por ele. “damião e as músicas com o metá ficaram conhecidas, mas essa atingiu um outro patamar. eu vejo fotos de pichação no recife, em são paulo, em porto alegre com frases da música. é sensacional porque é uma contribuição efetiva que você dá”, alegra-se.
ao mesmo tempo, ele pondera: “eu acho pretensioso colocar sob responsabilidade da música uma transformação. mas eu acho que é um grito que se soma a um problema que já existe há muito tempo”. e completa: "a minha mãe jamais iria a uma delegacia pelo constragimento que ela teria. é aquele preconceito que existe, a coisa de criminalizar a vítima. o ideal seria que essas instâncias que devem acolher as denúncias não se transformem em mais uma esfera de constrangimento".