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mestre anderson miguel e a renovação do maracatu no interior de pernambuco


o veterano mestre dedinha, da cambindinha de araçoiaba, enfrenta o jovem anderson miguel, da cambinda brasileira, em uma sambada de pé de parede (como são chamadas as batalhas poéticas do maracatu de baque solto ou maracatu rural). o velho mestre emenda uma sequência de versos rápidos, aos quais anderson, então com 19 anos, não consegue responder à altura. seu semblante é cansado, apreensivo. mas num momento súbito vem a reviravolta. dedinha ataca: “cantando samba você não tem profissão/ é triste a situação/ olha aí sua inocência/ venha cá, me dê a bença/ pra papai de criação”. anderson então rebate com o verso fatal: “e desse jeito no fracasso você cai/ que na pisada tu vai/ perdendo todo o teu brilho/ na idade eu sou teu filho/ mas cantando eu sou teu pai”.

este momento, durante a cerimônia de entrega do certificado de patrimônio imaterial do brasil, em 2015, sintetiza a maestria de anderson miguel: o talento astucioso, a inteligência intuitiva, a esperteza do improviso e desenvoltura firme para se colocar entre mestres com quase o triplo de sua idade. agora com 21 anos, o mestre de nazaré da mata é expoente de uma nova geração da ciranda e maracatu rural.

ele começou por influência dos pais, que até hoje vivem no cambinda. começou a cantar aos oito anos, fazendo participações pequenas em ensaios. aos nove, cantou num encontro de mestres em nazaré da mata e desde então foi se soltando. aos 12, já assumiu à frente do maracatu sonho de criança, mantido pela prefeitura de nazaré. ao mesmo tempo, também estava na cambinda como contra-mestre de seu pai, mestre aderito.

no ano seguinte, aos 13, anderson deixou a cambinda e foi ser contra-mestre de zé flor no maracatu águia brilhante. passou a vida estudando para assumir o atual “diploma” de mestre. ou melhor, treinando para se tornar o “neymar do maracatu” – apelido que ele acabou aceitando, apesar de "preferir mais anderson miguel mesmo". “quando saí do cambinda eu não estava preparado (para ser mestre). quando voltei, vim um pouco mais preparado, porque eu acho que a gente sempre tem que aprender muita coisa”, avalia. “muita gente acha que para ser mestre é só cantar, mas não. você tem que ter o respeito da brincadeira e tem que dar exemplo a cada brincante. a palavra mestre é muito forte, você domina o maracatu, domina o batalhão. e eu passei meu tempo como contra-mestre com pessoas que sabem o que é maracatu, como mestre zé flor. ele me disse: ‘mestre de maracatu não pode achar que é o dono do mundo, tem que manter o pé no chão’”.

como é ser mestre, aos 21 anos, em uma cidade pequena? como é a vida social? é preciso se regular? "tem um cuidado. eu olho muito o nome do maracatu. eu tô num barzinho bebendo e só por estar no bar bebendo é: 'olha o mestre do cambinda, onde tá'. é uma preocupação minha de ter esse cuidado. mas eu também não deixo de estar em um barzinho porque meu povo tá ali. se eu não for pra um bar hoje, é 'tá rico, tá se achando'. eu procuro estar perto da galera ali. eu nasci aqui dentro, não vou mudar por nada.

mestre anderson no ensaio da cambinda brasileira, em nazaré da mata. foto: heudeus regis.

ao mesmo tempo em que é defensor e conhecedor das raízes do maracatu, ele também traz novos elementos, introduzindo músicas do sertanejo e forró. é de uma nova geração, que está emergindo e trazendo novas referências ao maracatu.

“a gente tem uma geração de mestres muito bons, como zé galdino, barachinha, joão paulo [estes dois últimos formaram com siba o trio azougue vapor, mas também tem uma geração nova muita boa e que não canta no estilo do passado”, pontua. ele mesmo possui ideias nada convencionais para um projeto futuro, como “colocar na minha ciranda uma sanfona, uma rabeca e um baixo (elétrico)”, diz.

algumas novidades devem aparecer no seu terceiro álbum, que será lançado este ano. anderson miguel & raízes da mata norte possui uma discografia de dois cds e um dvd, todos ainda em estado bruto, rudimentares, mal produzidos. este novo trabalho, no entanto, terá produção de siba, seu padrinho, e promete levar o som do mestre de nazaré a uma nova dimensão.

“meu primeiro objetivo na produção é fazer que o disco tenha um som bem captado, grande e bonito, como o som é quando a gente vai ouvir ao vivo”, esclarece siba. “vou chamar outras pessoas para participar, pessoas que vibram na mesma sintonia da música de rua mas são de universos que normalmente não se tocam, para quebrar essa ideia de que a música tradicional é arcaica. são encontros que não são tradicionalmente da linguagem do maracatu e ciranda, mas a ideia é promover um diálogo. o maracatu tem uma história muito bonita. essas interferências têm que respeitar esse território, que é um território ocupado”.

siba aponta que a música de anderson pode alcançar outras esferas. “ele tem essa coisa do forró e sertanejo, mas também pode chegar no público do metá metá, do baianasystem”, aponta. os pés de anderson estão fincados em nazaré, mas sua mente vai longe. “é importante não esquecer a raiz da gente, mas acho que se ficar parado só aqui a gente não vai conseguir quase nada. o exemplo é siba mesmo, que foi pra mata norte, aprendeu muita coisa, conheceu muita coisa. hoje ele já está com um trabalho diferente do que ele vinha fazendo lá atrás, mas é porque ele buscou. então a gente tem que buscar, mas com tempo, tudo na hora certa, sem colocar os pés na frente. eu gosto de trabalhar com a paciência”.

toda vez que dou um passo, o mundo sai do lugar

“é mais do que um padrinho!”, ressalta anderson sobre o cantor, compositor, rabequeiro e guitarrista siba veloso, contando que ele foi o responsável por articular o seu show no prata da casa, no sesc pompeia, em são paulo, que na época tinha o produtor miranda como curador. “para mim foi uma experiência marcante mesmo. quando eu entrei no avião eu me senti siba no passado, com a fuloresta. eu pensei: ‘vamo se espelhar nele, porque não foi fácil para ele chegar aqui’. para gente não é fácil também, mas com força de vontade e dedicação a gente chega lá”.

mas siba não é a única referência. anderson traça seu próprio caminho carregando em seu âmago a história de barachinha, zé galdino, joão paulo, dedinha e de todos os outros mestres, além da própria cambinda brasileira, uma das mais antigas nações de baque solto, que completa 100 anos no ano que vem.

“eu me sinto uma pessoa que pode seguir a história desses mestres. eu me sinto o sucessor de cada poeta que está aí. eu estou no meu tempo, vai chegar a hora de ser essa pessoa que eles são hoje, com novos mestres chegando e respeitando”, afirma.

​​ anderson aprendeu com os mestres não apenas o maracatu e ciranda, mas a se impor contra as dificuldades e resistir às dificuldades. "eu não aprovo o que acontece hoje [no carnaval de pernambuco] até em termos de cachê, que demora muito tempo [a ser pago]. vem uma banda de fora recebe um cachê grande, antes e durante o show. por que a cultura da gente, que precisa tanto, não tem esse valor também? fico indignado com isso. a gente não quer ganhar 50, 100 mil reais como ganham essas bandas. a gente quer que todo mundo saia satisfeito e pague certinho. pelo menos um mês dá pra esperar, mas cinco, seis sete meses é demais. o maracatu de baque solto a gente vê aquela fantasia, mas por trás daquilo tem muito trabalho. não é chegar e tirar foto com o caboclo. aquela lantejoula é dificuldade demais e requer custo também, muita gente não olha isso. muita gente tem medo de dizer pra fundarpe ou qualquer coisa, mas eu não tenho medo, vou lá e digo. enquanto a gente não brigar, vai ficar sempre assim. porque a banda que recebe esse dinheiro ela exige. por que a gente não pode exigir também?", questiona.

ele diz que o seu maior sonho é cantar ciranda no carnaval do marco zero. “eu queria pegar um dia abrindo para nação zumbi ou até siba mesmo, com a casa lotada, montar uma roda de ciranda bem grande. eu tenho esse sonho, um dia eu chego lá", diz entusiasmado. e emenda com uma piada: "nem que eu cante de graça!”

 

sobre a cultura popular viva, a tradição como invenção e renovação, leia também: maracatu de baile solto: entrevista com siba

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